20141212

Ali mesmo

dormi naquele cobertor,
que foi nosso.
reparei no meio da noite,
quando já quase absorto
no sono,
que
tentei buscar cheiro conjunto.

frustei-me.

inocência minha caçar esta
herança de nossos dias
n'algo que não houve
amor,
quisera eu houvesse
suor.

enlaçou-me
em ilusão
no que tentei
enlençoá-la.




20141201

sobre o botão do replay

bebemo-nos e
secamos o pote
nosso
durante 365
êmi-éles
que pareciam
dias.

que de tudo aquilo,
na verdade,
não existiu
senão em nossa
mente
e deitado-largado
nos corpos.

cinco intensos dias
de complexidade
e relaxamento
soltos
respeitando todo o
pingar
das horas.

ao fim, os números:
um brinde,
dois filmes,
os beijos,
dois caminhos
e um futuro
incerto.



20141128

de doses em doze

cabe o mundo todo
num copo d'água.

disse a ela que as coisas não terminam
de uma hora
para outra,
que o amor é maior que a posse,
e que era o tempo passar
para as duas voltarem,

mas não importavam as palavras,
tinha que estar ali, ouvindo
o choro e tentando provocar
algum riso.
buscar a desatenção com assunto
que não para de aparecer na cabeça.

como aquela dor de dente
em noite de insônia
precisa ser esquecida com
qualquer filme.

passeamos e rimos.
sentamos, comemos
e quase choramos.

dei-me conta da não-volta do casal
e da dependência dela.
e
ao invés de um copo d'água,
pedimos duas doses de uísque com gelo.
bebemos rápido,
corremos dali para o primeiro programa
de balada da noite.

outras doses.
outras baladas.
a mesma noite.
transamos;
com outras pessoas,
também.

a ressaca curou o coração tão empenhada
como a bebedeira na destruição do fígado.


3 dias depois voltaram, 4 semanas terminaram, 12 meses nos juntamos.


mas vários mundos 
em doses de uísque.



20141127

de encontros

eu lembro que você disse:
- precisamos nos ver.
vamos marcar alguma coisa,
e conversar das coisas
passadas.

eu sabia que nunca iria acontecer.
sei que seus encontros -
semelhantes às suas promessas -
são mais furados que as botas.

ainda assim falamos de um amigo
ou dois,
e papeamos como se tudo fosse só
aquilo:
papear.

tempos depois, encontramo-nos.
eu a trabalhar a noite,
você estava de férias querendo viajar.
foi um só sopetão.

oi-quanto tempo-beijo-bochecha-tá indo prá onde?-vou prá lá-beijo-bochecha-precisamosmarcaraquelalá-tchau,viu!?.

não parece mais.
não é, de fato, mais
nem menos.
é só o que sobra para
a corrida
do hoje.




20141126

travestismo

e quê fazer quando você cansou
da sua cara?
quando já não mais
quer ou
importa
mudar o cabelo, fazer
a barba ou trocar
os óculos.

apaixonei-me por uma moça sentada
no assento preferencial do metrô.
não só a beleza, mas
o movimento leve de se levantar para o cego e
conduzi-lo ao banco;
e também o descontraído de puxar
a calcinha enfiada na bunda.

não foi sexy. foi natural.
foi como todos faríamos.

pensei se eu poderia vesti-la em mim.
se poderia falar para ela
- olá, você não me conhece. mas
eu gostaria de ter a sua face, seu corpo, sua casca.
vamos trocar?

e talvez até explicar todo o cansaço, toda a
vida, quiçá todos os problemas; e também ouvir
tudo o que aquela forma lhe incomodava,
o que lhe traz nas ruas e zanga.

queria saber, ainda, se - e como - a forma
transforma o conteúdo.
e de que jeito eu mudaria meu interior
travestido naquela carcaça de
moça do banco preferencial.
talvez seria uma forma de apaixonar-me
por mim mesmo n'outra pessoa.

e quem sabe, mais rápido que a palpitação cardíaca,
eu me apaixonasse n'outra pessoa novamente,
n'outro vagão ou n'outro caminho,
e quisesse refazer este escambo...

tal qual ator,
cresceria em minha vivência
tendo a forma alheia somando
o conteúdo.
tal qual humano,
aprendendo com a experiência
dos outros.

20141111

em águas

naquela manhã,
enquanto ainda abraçados
eu teria dito que te amo.
mas você bem sabe que 
eu não gosto das palavras prontas e com 
um só sentido.
no lugar disso, disse
que
estava sem ar.
 e logo após sua cara de susto:
- sem ar, por me sentir
deliciosamente afogado
em você.
que sorriu.
teria dito que me ama,
mas não pensou coisa
à altura para responder
rapidamente.
beijou-me,
como um ás na manga,
e amamo-nos de novo.

o dia correu.
melhor: escorreu,
como você escorrera
em meus lábios mais cedo,
no calor da carne,
lábio a lábio.
e continuava ali, na minha carne,
o resto do dia,
em sensações que desenham
a ausência,
nas mãos que buscam tocar
o cálido corpo,
na ereção fortuita no ônibus,
no almoço solitário mas
sorridente,
e no desejo de estar sonhando
só para acordar de novo ao seu lado,
afogado.

O guardador

Carrego comigo
roupas sujas, cadernos, algumas moedas, pares de camisinhas e alguma coisa mais que eu, por ventura, tenha esquecido.


Repare!

Não falo de um punhado de sonhos,
dos quilos de frustrações,
das questões vitais filosóficas e materiais que me atormentam,
dos desejos para amanhã ou depois ou ano que vem,
quanto menos,
daquilo que me cabe fazer com o agora.

Falo,
direta e
precisamente,
daquilo que me coube na mochila.

20141031

Fim de ano

Olhei pro calendário,
que mais parece planilha de Excel -
cheia de números e contas e letras -
de quando o Excel nem existia,
mas mesmo assim...
Era N O  V E M  B R O!
E, na mesma hora, me desce um arrepio pela espinha!

Deve ser essa a verdadeira origem do Halloween...
Aquele susto no início de novembro que você
percebe que não fez nada do que queria ter feito,
e que sua pilha de projetos para o futuro
continua
a crescer.

E mais:
Lembra-me dezembro!
E tudo aquilo de encontros, reencontros
forçados,
obrigação de eventos, festas,
sentimento de completude
só que incompleta,
sentimento de reinício adiantado...

Na verdade,
tudo isto trás coisas imprecisas
que não temos certeza sentir
em precisas datas no calendário.
Coisas que não preciso ser forçado
a engolir ano abaixo.

cicatrizes

de tantas marcas da vida,
não excluo a experiência
dos andares, dos caminhos,
das coisas todas que se
seguem.

que seria de meu aprendizado
sem tantos pontos, sem
os buracos costurados
das pegadas desta tanta
tortuosa trilha?

20141028

Auto-oferenda


a vida,
este caminho tortuoso
de difícil prospecção,
se torna muito mais 
tragável
quando aceitamos que, 
a partir de nossos padrões
morais de normalidade,
há gente

esquizofrenétisquisita.

20141027

No[i]te

Onze horas da noite e
na vista das várias janelas
não há para onde olhar.

Tanto o banco
quanto o canto
foram-se.

E a necessidade
é andar.

20141008

ser-tão velho

aos meus pais e avós, que provaram ser reais as palavras
"o sertanejo antes de tudo é um forte".



procuro a vereda estreita
rasgada pelos pés de meus
antecessores,
progenitores.
não somos mais os mesmos,
ainda que Renato insista do contrário.

daquele velho sertanejo
de botas, calças camufladas
e chapéu de couro,
me resta o sangue,
o sobrenome
e a saudade.

foi-se o pó e o areião
para algum lugar do passado;
o gado magro
e a palma cortada
ficaram por lá,
n'algum recanto
da Malhada do Galdino,
de Sítio Novo,
ou de qualquer lugar que a carroça leve.

da poética do sertanejo que -
sujeito feito coco,
duro e seco por fora,
mas q'numa pequena ranhura
hidrata em docilidade -
ficou-me uma poética adotiva,
renovada, mas
buscando herança.

mas lá no fundo,
por trás da casa velha,
escondido depois do umbuzeiro,
da cisterna, do açude,
do terreno e do morro,
do sangrador,
da Pedra de São Pedro,
do cruzeiro,
lá por de trás do mundo,
daquele mundo que
eu sonhara ser o universo,
tem um mar de lembranças,
quiçá de coisas que nem vivi,
de realidades que me tocaram
em outras pessoas,
em outros tempos,
através da linhagem
de sangue,
esta longínqua senda de vida.


20140917

sobre sentir

Não me sinto poeta,
nunca aceitei de bom grado tal alcunha.
Não tenho o comprometimento necessário
com
a poesia.
Eu instrumentalizo o poema
para meus fins.
Não é maldade,
nem bondade.
Preciso disso para
sobreviver.
Regurgitar em algum canto
a realidade
a fumaça
os sonhos
que me adentram no dia-a-dia.

É como a bebedeira e a limpeza vindoura
do corpo.
É a necessidade de esvaziar,
como a necessidade do sexo,
da emoção e da realidade.
É o soco na cara de mim mesmo.

20140916

apocalipse

"Do you know that 'if'
is the middle word in 'life'?"


E sem um f - 
de fernando, 
de uma foda ruim, 
de fim 
de férias
ou fim de qualquer coisa que agrade,
ou só do fingimento que é
essa foda vida -
tudo vira uma mentira.

tecido


rasgar as fotos
é o preço da realidade
que superou o sonho que
rasgou a pele.



20140912

das rotinas às botinas

um café,
um paieiro,
três janelas de word.
não era esse o sonho. (?)

faltava-me as garrafas de vinho espalhadas pelo quarto,
latas amassadas com cerveja quente e cinzas na mesa,
a fétida existência de um apartamento
e de uma pessoa no meio dele.
falta a máquina de escrever tiquetaqueando poesia -
também suja e despudorada -
sabendo que esta poesia é mesmo
reflexo da vida vivida,
ao invés de dor fingida do que sente.

não quero estes prazos para entregas,
mas recuso a responsabilidade de abandoná-los.
fico aqui, digitando minhas tantas páginas de trabalho
de forma tão pitoresca, desencanada e humilhada,
faço como deveria ser;
até chegar
sexta-feira;
pois no fim de semana eu vivo poesia,
percorro carreiras, passeio de boca em boca,
levo tudo para a cabeça,
me embriagando em gente,
em transas, em tudo,
faço tudo o que me falta nos dias corridos
somente para sobreviver mais um pouco.

cobre

tenho uma vela acesa em meu quarto.
ela fica entre santos, cruzes, incensos,
coruja, cordões e pinga.
mas não sou um cara religioso.
a vela de mel
amarela, cheirosa,
acesa,
me força lembrar a perenidade
do ambiente
e o peso
do ar.

o peso da existência
nas coisas experimentadas
ou, ao menos,
tangíveis,
não está nelas.
o peso da existência está
naquilo que sabe
que sabe
que existe.

tenho uma chama de esperança
em meu peito.
creio que as coisas se resolvem
e se resolvem,
ou não,
não quero deixar que apague.

20140907

Samba sem cadência



Do amor ao soul,
em que brindamos com Tim,
um amor em samba antigo,
do tipo calmo e dengoso,
no nosso tempo, nossos risos,
também angústias e incertezas.
Foi o samba, sim,
palco de toda volúpia,
como a rua
e toda a boemia da noite,
motivo para mais outro dia.

Talvez não estivesse preparado
ou aquela dança não fosse minha;
que não sei sambar não é coisa nova
e que mexo as pernas conforme o som pede...
Mas acho que aquele samba,
naquela época, não era nosso
e o pisar em dedos cansou os pés.
E os passos mudaram de ritmo
e de direção com o tempo.
Quando perdemos a cadência
já não adiantava dançar
sem lá dentro a música tocar.

Um quase repente

Você meu amigo
aqui seria seu poema,
mas o papel ficou comigo,
creio que não há problema.
Você vem lá de muito longe
lugar que tem que sair cedo.
Se chove e eu tô sem galocha,
problema seu: eu fico e bebo!
Mas não me venha com papo de brocha,
de chifre, Rio ou coisa assim.
Você também já pisou na bola,
o jeito é rir sem fim!
Mas o que te falo agora,
falo sem encontrar a Sueli,
no papel do menino que chora
prá eu comprar amendoim.
Esse papo mais não rola,
escrevi sem precisão.
Fiz isto somente para,
que mesmo sem Maria Clara,
pudesse mostrar para um cuzão
que sem uma ideia mara
em alguns minutos eu fazia
em qualquer papel de pão
um lembrete para um amigão
que palavra sentida é poesia!

20140821

imortalidade

Encontrei um pijama no armário - 
aquelas camisetas velhas, desbotadas que de tanto tempo juntos é mais querida e mais confortável -
com o cheiro do amaciante
que sua mãe lava roupa.
Lembrança
via
cheiro.

Kundera
foi mandado daqui a ali
com um certo gesto e
fez Agnes num segundo, no gesto de uma velha,
na imortalidade.
Aquele mesmo do nosso riso e de todo o esquecimento que viria.
Aquele mesmo que permanece na sua estante,
que você me tomou emprestado
e nunca leu.

Do fim

Tudo acaba bem quando tudo acaba.


20140820

Arrabaldes




caminhar em cidadezicas perto de grandes metrópoles...
a loucura em ausência na presença da calmidão;
ou também,
a falta que faz pessoas e coisas e animais e vida na rua
da classe média que não se expõe ao perigo de admirar
sol,
gente,
rua...




20140802

Calminhos



Já são quase 45 do segundo,
e não espero que vá muito longe.
Pois as coisas continuam tão
incertas.
São 26 anos de corrida,
ou mais aprazível,
caminhada,
minha
cal - minha-da.
Nunca tive pressa das coisas e,
por vezes, foi difícil para
quem estava bem por perto
trilhando junto.

Mas passar do primeiro quarto não é fácil...



20140717

Das necessidades.

Disse para mim
"preciso de algo
a me apaixonar"
e fui andar por aí...

[ Pena não ser coisa que
se decida. ]

Perdi-me por aí, ainda
apaixonado em andanças.







20140702

SMH - 001

Estádio - SMH001


Não sei desenhar, mas aí está uma graça que fiz no papel. A ideia era juntar o tema da Copa de Futebol e o tema de habitação, assim como as prefeituras fazem nas residências das classes pobres, queria ver ainda uma estrutura da elite colocada como "Interesse Social". Ao lado, foto de casa no Morro da Providência, exemplo de como a SMH se preocupa com a habitação.

20140521

Torpor



Era como se eu não tivesse acordado, mas a náusea e a dor de cabeça diziam que sim. Vieram-me as ideias antes das coisas, e as duas primeiras eram onde eu estaria e como chegara ali. A primeira foi respondida quando vieram-me as coisas: o gramado que estava deitado, ao lado de uma avenida sob um viaduto. Reconheci por já tê-la visto de cima, do viaduto. O gramado, nem sabia da existência, diferente das outras pessoas que se levantavam de seus aposentos.


A segunda dúvida não sabia como tirar. Lembrava-me somente das drogas no dia anterior. Talvez algo mais... de uma sensação estranha de algo passando bem próximo ao meu corpo, enquanto estava inerte desacordado, chegando a encostar em minhas roupas com uma sutileza felina. Mas isto bem antes de o sol começar a despontar e fechar minhas pupilas, também meus olhos.


Não sabia o que teria mexido comigo, se algum animal, ou inclusive se tinha sido real mesmo. No entanto, uma primeira desconfiança percorreu-me ao perceber meus bolsos vazios, sem mesmo minhas chaves. Teria perdido na bebedeira? Ou talvez nas apostas no bar? Muitas coisas para responder, mas as memórias eram ineficientes para. Teria eu que percorrer o mundo perseguindo meu passado.

Antes,
uma olhada em volta.

Percebo, ainda na dificuldade em abrir os olhos. Num canto, alguns policiais já tentando expulsar os mendigos que, como eu, dormiam nessa praça-gramado-sejá lá o que for sob o viaduto. Sem pressa, inquiriam os cidadãos-moradores-nômades-seja lá o que for sobre suas vidas, suas famílias, seus trabalhos, seus vícios; revistando um por um, bagunçando suas trouxas-residências-pertences-seja lá o que fosse, depois, passavam ao próximo...
Sentei-me para olhar ao redor e tentar reconhecer algo que pudesse fazer, pelo menos enquanto havia tempo sem os policiais me perceberem e virem encher o saco.

A praça. Larga, embaixo do viaduto, partes em grama, partes em entulho, comprida, desde a base da subida do viaduto até o cruzamento desta avenida contígua com outra, maior, onde estavam os agentes da lei fazendo suas apreensões matinais. Eu, no meio daquilo tudo, vejo uma espécie de barraco encostado na parede de base do viaduto, com um homem sentado numa cadeira de encosto, despreocupado com o que havia às suas costas. Penso que talvez ele soubesse de algo que me ajudasse; ou, pelo menos, se eu chegara sozinho; ou que horas; ou se estava mesmo acordado.

O levantar-se se torna mais difícil quando as dores no corpo atacam os enjôos e, repentinamente, seu estômago vem parar na goela. Curvo-me sobre meu âmago tentando devolver as tripas aos seus lugares. Nisso, uma tosse antiga, seca, dolorosa, se faz presente; aquela que já tinha machucado o peito, a garganta e o pulmão, de tão insistente.


Para tentar recobrar a respiração, sentei-me novamente, talvez um tempo útil para ensaiar a abordagem ao homem sentado na cadeira de encosto. A essas horas não sabia como conseguira dormir naquele chão úmido da grama, e frio do vento. Relembrou-me a constante contorção noturna que o frio provocara; parecia que o vento gelado cortante vinha de cima e de baixo, sem ter como fugir de quaisquer de suas rajadas.
Ao observar melhor o homem, reparo uma movimentação conhecida e facilmente decifrável: alguns jovens veem até ele casualmente e afastam-se, encontrando alguns carros ou pessoas em uma esquina ou rua próxima, trocando pacotes. Talvez fosse minha resposta. Talvez o elo para explicar minha estada ali. Mas talvez pudesse explicar minhas dores no corpo, a tosse, a náusea. Talvez, perigo.




Desse modo, observo.

 
Vejo vários moleques irem e virem com as encomendas. A ironia: a polícia ainda no começo da praça, no lado oposto, acordando alguns mendigos desavisados. Fico pensando a situação à qual são expostos, estes aviõezinhos, perigo de tomar porrada, ficar internado, serem vitimados em guerra por espaço ou por milícias ou pelos policiais ali ao lado... Percebo meu engano só depois de ver o homem sentado na cadeira de encosto levantar o braço direito e olhar - sem movimentar a face ou os olhos – para os policiais ali do outro lado da praça. Depois de algumas dezenas de segundos, os olhares se encontram, o braço é abaixado, e então os representantes da segurança pública afastam-se das moradias, sobem em sua motos e tomam seu rumo embora. O sistema estava todo completo e não havia contradição, apenas permissões de ambos os lados. Coexistência. Talvez o melhor para os dois mundos. O seu sentido só se encontra na existência una do outro, como a vida, que só ganha sentido quando aponta seu fim, para fazer pensar.

Ainda sentado, acho que chegou a hora de caçar sentido no meu dia. Um breve papo com o homem sentado na cadeira de encosto poderia me explicar muita coisa e, outra: o que teria a perder mesmo, além da vida? A cadeira de encosto está virada em minha direção; não fosse um moleque na frente conversando com ele, eu conseguiria olhar em seus olhos e estabelecer aquele contato visual inicial necessário para percebermos um ao outro. Tento ensaiar duas ou três frases que não sejam muito agressivas nem muito questionadoras a ponto de eu parecer louco mas o suficiente para eu tirar minhas dúvidas sendo que não queria acusar ninguém... desisto! O olhar nos olhos me traria o que dizer, a relação só poderia ser feita assim!

Olho por cima do ombro do moleque, para tentar olhar o homem sentado na cadeira de encosto logo que o primeiro andasse. Assim, um olhar fixo e inesperado vindo de mim já me poria numa situação de segurança, como se eu estivesse premeditando seus movimentos, como se eu estivesse preparado para qualquer coisa. Coisa mais falsa. Mas este moleque tinha apenas que andar para eu conseguir contato visual. Mas não andava.

Não imagino o que tanto falavam, mas podiam dar esta chance a um cara que só tinha os olhos e a esperança como últimas armas. Se esse moleque andasse, eu teria uma saída, talvez até conseguisse meus documentos, chaves, carteira, por meio dessa conversa, alguma dica que o homem sentado na cadeira de encosto me desse; assim não teria que andar 30 km, ou pedir caronas nos transportes, ou sei lá mais o quê...

O moleque dá alguns passos para trás e percebo os gestos de fim de conversa. Já é hora de eu me levantar, pois se olhasse fixamente e andasse em sua direção, estaria mesmo em posição superior. No que eu vou me levantar, me apoio com o braço direito no chão e percebo machucados em minha mão, mas não posso me preocupar com isto agora. Ao que torno minha visão para o homem, vejo somente o garoto me olhando e andando em minha direção. No momento do contato de nossos olhos, do garoto e meus, uma falta de ar, seguida de forte tosse e as dores no fim da garganta, que me impedem de levantar, e caio sentado de lado, novamente.

Daqueles 100 metros que nos afastavam, quase metade já corria às suas costas. Somente agora percebia o garoto como algo real: quase 1,70 de altura, um jeito atarracado, mas largo, de traços negros e cor parda escura. Mas o que facilmente se notavam eram os braços, longos, tão, que pareciam chegar aos joelhos, se soltos. Uma mão no bolso e outra com uma sacola fechada. Chinelos de dedo com as solas quase em fatia. Bermuda marrom rasgada, provavelmente o que sobrara das calças, e uma camiseta amarela. Mastigava algo com o olhar fixo em mim, andando devagar, por vezes tropeçando em sua própria lentidão. Eu, assustado, em posição de vítima de espancamento, tossia. E tossia. E de novo. Olhei a roupa: pingos de sangue. O susto daquele garoto em minha direção e o susto do sangue somavam-se em minha tosse. O que ele podia querer? Já chegando aos 20 ou 15 metros de mim ele parou.


Ainda olhando fixo, escolheu um raio em minha volta e começou a andar. Cuspiu aquilo que mastigava, que notei ser uma tampa de bic. Naquele momento não sabia ao certo o que fazer, mas sabia da impossibilidade física de correr, somado ao orgulho moral da covardia sem nem saber o motivo. Restava-me apenas encarar, talvez não ele, mas o destino.

O garoto antes de completar um quarto de volta de mim, começou a se aproximar, como se eu tivesse gravidade própria, mas sem sair de seu raio elíptico. Finquei os pés no chão e olhei o horizonte, agora de pé. A adrenalina curou a tosse, mas a falta de equilíbrio vinha testemunhar minha fraqueza e cansaço.

A coisa mais racional que pensei na hora era tentar derrubar o garoto e correr para falar com o homem sentado na cadeira de encosto, antes que o garoto chegasse a mim. Ele se aproximava, com os olhos em chamas, até que a dois passos de mim, ele me olhando com o queixo alto, assumo meus braços em posição de luta e também tento rodeá-lo. Os soluços de tosse vinham, mas o nervosismo não me deixava notar. Eu, de cima da calçada e ele na rua, de braços baixos, acerto uma direita muito em cheia em sua bochecha. Pensei em correr, mas não podia dar-lhe as costas facilmente; se ele caísse, correria. O corpo foi para trás, bambeou desequilibrado. Cairia, não fosse a perna esquerda de apoio que não deixou o corpo esfacelar-se.  

A face nada refletia o golpe e seus passos à frente me faziam crer que eu estava perdido. Ele, ainda com os braços baixos e um jogo de pernas de um João Bobo. O que restava era tentar de novo: uma esquerda que atingiu algo entre a bochecha e o nariz, seguida de uma rápida e um pouco fraca direita na têmpora.

Minhas mãos doíam dos socos, dos machucados nos dedos, e sua cabeça somente se movimentava a cada golpe, sem reação de dor, cansaço ou desespero. Fico distante como proteção. O perigo ainda estava em seus olhos, fixos nos meus. Eu não podia correr. Já andávamos uns 10 metros. Ele de guarda baixa. Talvez correr fosse a saída. Mas daria as costas. E era enquanto tinha tempo. Correr e procurar o homem sentado na cadeira de encosto. Busco-o com a visão. Nem ele mais, nem a cadeira. Talvez em outro lugar...

De repente, uma forte dor na têmpora esquerda, o meu corpo solto no ar e a inexistência de equilíbrio. Caio inerte no chão, como um saco de farinha, se adaptando ao relevo. Aqueles braços longos...



20140520

Modorra



- O que está escrevendo?
- Um romance.
- Qual é a história?
- Não há história. São só... pessoas, gestos, momentos. Fragmentos de sensações. Emoções evanescentes. Em resumo... as maiores histórias já contadas.
- Você está na história?
- Acho que não.
(Waking Life)




Já faz algum tempo tenho andado em suspensão.
Talvez seja essa a palavra. Não sei ao certo.
Sei que não estou aqui enquanto não encontro onde estou...
Tento estar sempre à frente, mas não tenho conseguido alcançar
nada.

Por isto ando alto.
E tenho atropelado tudo.
E tenho abusado de tudo o quanto posso.
E me mantido excessivamente entorpecido.
Pois não aceito mais a naturalidade dos dias fúnebres
em minhas veias.

Em compensação, neste estado de inércia,
tenho sonhado bastante.
Tanto que muitas vezes me confundo,
e algumas procuro me confundir.
E são tantos sonhos tão simbólicos,
tão cheios de realidade e emoção,
que talvez esteja mesmo escolhendo acordar
no lado errado.

Dia desses eu perdi os dentes numa briga,
mas não foi nada comparado a perder a noite.
Depois perdi os dentes arrancados, torturado.
E teve a vez que o dente caiu...

Eu não sei o que quer dizer exatamente tudo isso.
Sei da agonia. Sei da aflição.
Sei do tédio que tem sido o
derreter dos dias...

Da memória,
perdi todos os pedaços de mim.
E caminho sem saber onde pisar.

20140409

talvez a última

Ela e eu. Talvez fosse nossa última noite. Não que sabíamos disso. De nada sabemos, na verdade. Mas parecia tácito que provavelmente seria a última noite. Estava nos fatos que não nos veríamos logo. Estava em casa, corri para a cozinha e fiz o melhor jantar de todo nosso relacionamento. Coloquei até os temperos secretos, mas deixei ainda algo guardado para outro dia. Comemos, como nunca. E logo depois comemo-nos com os olhos. Era inevitável. Deitados no sofá, a barriga cheia, o saco cheio. Demos duas. Na verdade, foi só uma, mas para mim pareciam duas. Bem, para ela, só ela sabe quantas pareciam... Poderiam ser as últimas.



As promessas eternas. Os carinhos eternos. Tudo parecia real e fantasiado. Não era o que queríamos. Ela dormiu primeiro. Pensei em tudo o que havia passado. Tinha muito, muito mesmo a pensar. E pensei. Pensei que fosse meus últimos pensamentos sobre. Pensei que estivesse no fim mesmo. Mas na manhã seguinte, o recomeço. Acordei. E de algum modo, também a acordei. E lá foi mais uma. Duas. Três...

Alheio - ou parasita virtual

às vezes me pego viajando
virtualmente
nessa coisa que é internet.
e dou voltas em caminhos que...
você não tem nem ideia!
coisa que nos afasta de nossos
vizinhos,
que mal teria aproximar de
desconhecidos?

o stalkear inocente
em meus pés,
a saber formas de vida,
de pessoas ou grupos,
que nunca conhecerei.
só prá descobrir como é
o lado de fora
do lado de lá.

me pego entre multidão de pessoas
de vozes que nunca ouvi.
imagens de luzes tão distantes.
em vidas, momentos, emoções,
alheios.
tudo isto a chupinhar
o seu dia.

20140325

Paralelos

Com café e meus palheiros apostos,
inicia-se a jornada para alguma
coisa que deva escrever,
ou no mínimo fazer ler.
Sempre recordo de almas próximas
com produção desconhecida e distante
de pessoas que escrevem tudo aquilo
que eu sei que eu queria dizer.
Das almas paralelas, levo lembrança,
na pena, pedaços de suas palavras.
Sei que em ideias
e estrofes,
somos todos perdidos,
buscando poesia.


20140318

Um dia quente

Dia vulgarmente quente.
A vaporosidade vivifica os valores físicos.
Vultos fumaçosos do calor. Do vapor.
Domina-nos, o abafo. O fogo.
A viril ferocidade. Ela e eu,
na fugaz vacina de nós mesmos.
Vadios. Fiéis. Vivos.

Não a cidade, mais quente:
a mulher.
E ela responsável pelo meu suor.
Pela minha libidinosa fluência nela. E
enlaçados, osculávamos juras.
Encorpados, voluptuosamente aninhados
no corpo alheio.
Forçamos a situação, que nos força a perder a cabeça.
Facilmente encontramo-nos em posição de adoração.
Naquele momento, era ela o meu motivo.
Meu sentido, que é minha vida.
Meu tesão de viver.
E de ser. E de estar ali com ela.

E tudo isso concentra-se na pessoa dela.
Profunda admiração e vivacidade.
Orgulho, gosto e alegria.
Prazer e vontade.
Ela.
Navegar-me e perder. Nela.
É ela meu porto.
Meu furor. Meu maior êxtase.
Êxtase em seu corpo.
Seu prazer.
Vapor.
Fogo.
Corpos.
Ela.
Paixão.
Calor e mais fogo.
A mulher, o prazer e a vida.

Texto encontrado de Set/2007

Girando em roda

Há um rato se contorcendo
em meu quarto.
A morte logo vem visitá-lo
e levá-lo.
O matador fui eu mesmo e,
ainda não sei o motivo,
me sinto triste por isto.
Tento limpar a mente e a
culpa
lembrando todo o mal que poderia causar...
Mas nem por isso cometo homicídios
àqueles potencialmente ou verdadeiramente
maus...
Podia tê-lo deixado brincando,
correndo aqui e ali.
E quem sabe alimentá-lo?!
Mas a vassourada certeira
foi a brusca morte da esperança.

Cá estou com um rato,
em minhas mãos assassinas,
morto
e não sei quê fazer.

Talvez tivesse família, sonho, desilusões,
ou até mesmo este tipo de
alucinação.
Ao menos, fome tinha,
mas perdeu.

Agora eu,
correndo prá lá e prá cá,
tentando escalar paredes,
entrar em pequenos buracos,
matar aquilo que me mata,
devo esquecer o rato e
continuar girando
a rodinha da vida.

Clima

Não esperava que um vento,
vindo de Norte como aquele,
pudesse balançar as telhas tanto
como o fez em minha cabeça.

Era só memória,
quiçá inventada,
nas ilusões de teus braços.

Como podem ser loucos
os amantes
que em alguns momentos
sonham tangenciar a tão inócua
felicidade.

Deixou um assovio que,
junto ao arrepio,
transformou tristeza em apatia.