20070602

Blues, cerveja e memória...

Ela, quando cercou-me, tinha uma varinha na mão. Logo após desenhar algo no céu com esta, repetiu uma dúzia de palavras, ou até mais, com sons e fonemas estranhos à mim. Num intervalo destes sons, me afeiçoei por um grupo deles. Parecia meu nome, mas não era, nem parecia. Lembrava meu nome. Mas parecia meu nome. Era como se ela estivesse falando meu nome de trás para frente, mas não silabicamente, parecia que dobrava os fonemas, invertia-os, para então dizer. Foi aí, após pensar isso tudo, que acordei!
E acordei com um som na cabeça e uma baita ressaca! Levantei meu olhar para ver se havia alguém mais no incômodo cômodo. Nada! As vezes não acreditava na graça de poder ser um ser-humano moderno da raça masculina e poder pedir até cerveja pelo telefone sem fazer contato com outras pessoas ao acaso. Isso era eu ali deitado no sofá sozinho. Lembrando disso, pensei na cerveja! Será que teriam acabado todas na última reuniãozinha (festa!)? Foi na terça?... quarta? Não ajudaria pensar, atrapalharia mais o pensamento. Outra coisa que não adiantaria pensar era como chegara ali, em casa, deitado humildemente descoberto. Essa era uma grande dúvida, mas só tiraria quando encontrasse a turma da noite passada. Os caras do trabalho? Não, não; ontem foi sábado! O pessoal da faculdade? Talvez, mas por que não o grupo do futebol? Até joguei futebol esses dias... mas foi ontem? Ah! Não adianta! Onde estava.....? Cerveja! Será que restou?
Nada na geladeira! Quem sabe se eu pusesse para gelar algumas e deitasse um pouco mais... Isso! Onde estão... Ah, sim, aqui! ... Deixar bem no fundo, atrás desse leite estragado... o que esse leite estragado faz aqui? Há muito tempo eu deixei de tomar leite! Será que trouxeram na festa na quarta? Ou foi na terça? Quem mais esteve aqui? Ah... talvez a Gisele! Isso, ela trouxe porque não bebe cerveja! Nossa, mas há quanto tempo ela esteve aqui? Talvez domingo...? segunda? ... terça? Esquece; vou deitar mais um pouco! Quem será que limpou minhas almofadas? Quem mandou lavá-las? Odeio dormir no meu sofá sem minhas almofadas!!! Só eu sei a falta que me fazem! Mas, e aquele som... ? Aquele som... aquietou-me... será que era um sinal...? uma música... um...

A senhora-moça com a varinha saíra voando. Parecia com nojo, ou algo assim. Logo, apareceu uma sapa. Sabia que era fêmea pois tinha longos cabelos cacheados loiros. Cachos loiros... Cabelos? Uma sapa com cabelos?

A indignação acordou-me. Que sonho doido; doido! Onde já se vira?

A sapa dera espaço a um imenso campo de trigo. Um lindo trigo amarelo-ouro. Parecia que o mundo era formado de campos de trigo. Uma imensa bola de ouro. Eu corria, e o trigo não acabava. Logo mais à frente, eu sabia, o trigo se transformava em cevada, então corria mais e mais rápido. O mundo era trigo e cevada. Eu via as curvas dos montes de trigo. Subindo nos morros, podia ver as coxas do mundo feitas de plantações e plantações de cevada. Repentinamente, o mundo me parecia mais sensual. Aquela ideia me excitava. Lembrei-me da Júlia. Das coxas de cevada da Júlia. Das coxas da Júlia e cevada em cerveja. Das coxas, da Júlia, da cerveja. Das coxas e da cerveja.

Assustado! Nossa, que sonho mais... excitante! Tinha tanta cerveja! e também tinha a Júlia. Suas coxas! Lembrei-me: a cerveja deve estar boa! Vou, pego, volto, sento. Ligo o rádio. Toca um blues.Os metais, a rouquidão, o ritmo, a simpática tristeza. O blues toca, e eu quase não estou aqui. Ah, Júlia... A cerveja! Elas me deixam muito excitado; as duas juntas! Eu não penso mais nos meus problemas. Eu tenho cerveja e tenho blues. E quando precisar, terei a Júlia. E a Gisele, que esquece leite na geladeira. A Júlia estava na festa aqui quarta? Terça? Acho que foi quinta, depois da Gisele viajar! Nossa, será que ela demora? Quem vai tirar aquele leite de lá? A Gisele cuida de mim, arruma minhas coisas, a casa. Da Júlia, e suas coxas, eu cuido na cama! E o blues sempre rola. A cerveja desce... não há nada como blues e cerveja. Cadê a Júlia uma hora dessas? Vou pegar mais uma garrafa. Levanto, vou, mas pego mais três! Volto, abro uma, encosto duas e deito no sofá. Quem bagunçou meu sofá? Onde será que estão minhas almofadas? O blues toca... Acabo a garrafa e largo-a no chão. Fecho os olhos. O blues entra em mim e me trepida. Há um som estranho na música, que me faz prestar atenção. Parece que repete o meu nome; mas há distorção, e ele está desencaixado dobrado, virado, não sei. Ele está encaixado no blues, mas desencaixado do real. Não me é estranho, mas não é natural! Pego outra garrafa do chão. Abro, dou dois goles cheios, encosto-a e torno a fechar os olhos. Onde a Júlia está agora? Quando esteve aqui? Ela veio com a Gisele na terça? Na quarta? Onde estava a cerveja gelada que tinha? O blues toca... Parece que repete meu nome sem parar. Mas não em ordem. E está distorcido. E sujo. E com cerveja. Onde está a cerveja no blues?

20070215

A feira

"Mas nada disso vale fala, porque a estória de um burrinho, como a história de um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida. E a existência de Sete-de-Ouros cresceu toda em algumas horas - seis da manhã à meia-noite - nos meados do mês de janeiro de um ano de grandes chuvas no vale do Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais" - "O burrinho-pedrês" G. Rosa



Washington chegara mais cedo na feira aquela manhã. Já montara a barraca, contara o caixa de troco, expusera as verduras, enquanto os outros feirantes ainda chegavam ao pátio. Este era o estacionamento de um galpão da prefeitura interditado, localizava-se afastado da área urbana de um bairro de classe baixa. A feira iniciou normalmente: já às cinco da manhã chegavam os primeiros fregueses em busca de alimentos frescos. Todos sabem como a freguesia da classe baixa é exigente, então já trabalhavam duramente para agradá-la! Washington era bem conhecido pelos outros feirantes e pelos fregueses, com isso, vendia muito bem seu produto verde. Mas aquela manhã não era outra manhã qualquer só pela vontade da personagem e por estar escrita aqui, começou a mudar quando Washington viu três crianças famintas pedindo comida aos consumidores, e ninguém dava algo, o mínimo que davam era atenção e uma desculpa esfarrapada. O dia e as crianças seguiram seu destino, até o meio-dia, quando voltaram, as crianças, pois o dia seguiu. E voltaram notando-se: rolavam no chão brigando por um pedaço de pão com presunto, ambos velhos. No meio da briga, chega um cão, também velho, mas mais fedido, rouba o lanche e corre. Aquela imagem transtornou a nossa personagem. Arrebatado pela ira de receber um choque de injustiça no peito, parou de gritar sobre a Couve, a Salsa ou a Alface, começou a bradar - ganhando o apoio da massa - sobre as desigualdades sociais - as pessoas gritavam-, os abusos sofridos pelo povo - e os gritos de apoio-, a falta de liberdade - as pessoas se revoltavam-, a injustiça política - e começou a desconstrução! Washington perdeu-se no meio da confusão! Eram revoltosos, mas pacíficos! Gritavam uns contra os outros, mas em união e a favor de idéias semelhantes! Aquele dia as noções fabricadas não valiam de nada. Todos perceberam que somente juntos achariam algo. Houve uma magia nas palavras de Washington que tocou todos ali presentes! Naquele momento, ele era uma espécie de líder, mas estava ali no meio de todos, perdido neles e em si. Decidiram caminhar à base militar mais próxima. Enquanto andavam, mais e mais pessoas juntavam-se ao grupo.Perto, uns 200 metros da base, ninguém mais estava lá. A notícia corria! Todos sabiam de um imenso grupo revoltado, e seguiam-no! Tomavam cidade por cidade só ao aproximarem-se. Até chegarem ao edifício onde a presidência estava. Lá, os governantes chamaram por um responsável; Washington foi erguido. Ele, agora um pouco perdido e desorientado, conversou com o presidente, explicou o sentido de tudo aquilo ali, e que não havia sentido em todo o resto. O presidente e seus assessores, amedrontados, deixaram nas mãos de Washington o país, e fugiram para uma nação exportadora de bananas. Washington era, agora, presidente. Presidente Washington de Sousa. Era ele um homem importante... Era ele presidente! Era ele...


Era ele Washington! Só o Washington:
-Ô, Uóxintum! - o motorista gritou - acorda desse caminhão, leva essas caixas pro Seu Mário Cebolêro!
-Uhm... Presiden... ah, xá prá lá!

Levou, foi, voltou, levou. Fez o mesmo percurso umas quinze, vinte vezes. Viu o cachorro do sonho com um lanche na boca, atrás vinham os muleques, chutando-se e ao cachorro. Revoltara-se, mas por hora, só resmungava. Estava fazendo o caixa, quando um senhor estacionou seu carrinho na sua frente e começou a pegar algumas verduras. Escolhidas, Washington ensacara-as e passou ao freguês, que colocou em seu carrinho, virou-se para pagar. Nisso, dois jovens passaram correndo, um roubou as verduras no carrinho do freguês, e o outro derrubou verduras à mostra na barraca. Washington revoltara-se com aquilo! Não podia segurar! Iniciou seu brado, semelhante ao sonho, mas sem as luzes heróicas. Bradou, bradou, bradou e ... nada! O povo olhava-o com desinteresse e certo asco. O feirante percebeu, passou a atacar às pessoas ali também. -Acomodados! Ninguém fará por vocês se não fizerem nada!!! Piorou; desviavam dele agora. Parecia um perigo. Não demorou muito, dois corpos cinzas, balofos, chamados policiais, apareceram. Não perguntaram, repreenderam o direito de liberdade de expressão com socos, o direito de ir e vir jogando-o no camburão. Mais tarde, acordaria numa cela úmida, achando que fora só um sonho. Mas era ele lá preso. Detento Washington de Sousa.