20070215

A feira

"Mas nada disso vale fala, porque a estória de um burrinho, como a história de um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida. E a existência de Sete-de-Ouros cresceu toda em algumas horas - seis da manhã à meia-noite - nos meados do mês de janeiro de um ano de grandes chuvas no vale do Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais" - "O burrinho-pedrês" G. Rosa



Washington chegara mais cedo na feira aquela manhã. Já montara a barraca, contara o caixa de troco, expusera as verduras, enquanto os outros feirantes ainda chegavam ao pátio. Este era o estacionamento de um galpão da prefeitura interditado, localizava-se afastado da área urbana de um bairro de classe baixa. A feira iniciou normalmente: já às cinco da manhã chegavam os primeiros fregueses em busca de alimentos frescos. Todos sabem como a freguesia da classe baixa é exigente, então já trabalhavam duramente para agradá-la! Washington era bem conhecido pelos outros feirantes e pelos fregueses, com isso, vendia muito bem seu produto verde. Mas aquela manhã não era outra manhã qualquer só pela vontade da personagem e por estar escrita aqui, começou a mudar quando Washington viu três crianças famintas pedindo comida aos consumidores, e ninguém dava algo, o mínimo que davam era atenção e uma desculpa esfarrapada. O dia e as crianças seguiram seu destino, até o meio-dia, quando voltaram, as crianças, pois o dia seguiu. E voltaram notando-se: rolavam no chão brigando por um pedaço de pão com presunto, ambos velhos. No meio da briga, chega um cão, também velho, mas mais fedido, rouba o lanche e corre. Aquela imagem transtornou a nossa personagem. Arrebatado pela ira de receber um choque de injustiça no peito, parou de gritar sobre a Couve, a Salsa ou a Alface, começou a bradar - ganhando o apoio da massa - sobre as desigualdades sociais - as pessoas gritavam-, os abusos sofridos pelo povo - e os gritos de apoio-, a falta de liberdade - as pessoas se revoltavam-, a injustiça política - e começou a desconstrução! Washington perdeu-se no meio da confusão! Eram revoltosos, mas pacíficos! Gritavam uns contra os outros, mas em união e a favor de idéias semelhantes! Aquele dia as noções fabricadas não valiam de nada. Todos perceberam que somente juntos achariam algo. Houve uma magia nas palavras de Washington que tocou todos ali presentes! Naquele momento, ele era uma espécie de líder, mas estava ali no meio de todos, perdido neles e em si. Decidiram caminhar à base militar mais próxima. Enquanto andavam, mais e mais pessoas juntavam-se ao grupo.Perto, uns 200 metros da base, ninguém mais estava lá. A notícia corria! Todos sabiam de um imenso grupo revoltado, e seguiam-no! Tomavam cidade por cidade só ao aproximarem-se. Até chegarem ao edifício onde a presidência estava. Lá, os governantes chamaram por um responsável; Washington foi erguido. Ele, agora um pouco perdido e desorientado, conversou com o presidente, explicou o sentido de tudo aquilo ali, e que não havia sentido em todo o resto. O presidente e seus assessores, amedrontados, deixaram nas mãos de Washington o país, e fugiram para uma nação exportadora de bananas. Washington era, agora, presidente. Presidente Washington de Sousa. Era ele um homem importante... Era ele presidente! Era ele...


Era ele Washington! Só o Washington:
-Ô, Uóxintum! - o motorista gritou - acorda desse caminhão, leva essas caixas pro Seu Mário Cebolêro!
-Uhm... Presiden... ah, xá prá lá!

Levou, foi, voltou, levou. Fez o mesmo percurso umas quinze, vinte vezes. Viu o cachorro do sonho com um lanche na boca, atrás vinham os muleques, chutando-se e ao cachorro. Revoltara-se, mas por hora, só resmungava. Estava fazendo o caixa, quando um senhor estacionou seu carrinho na sua frente e começou a pegar algumas verduras. Escolhidas, Washington ensacara-as e passou ao freguês, que colocou em seu carrinho, virou-se para pagar. Nisso, dois jovens passaram correndo, um roubou as verduras no carrinho do freguês, e o outro derrubou verduras à mostra na barraca. Washington revoltara-se com aquilo! Não podia segurar! Iniciou seu brado, semelhante ao sonho, mas sem as luzes heróicas. Bradou, bradou, bradou e ... nada! O povo olhava-o com desinteresse e certo asco. O feirante percebeu, passou a atacar às pessoas ali também. -Acomodados! Ninguém fará por vocês se não fizerem nada!!! Piorou; desviavam dele agora. Parecia um perigo. Não demorou muito, dois corpos cinzas, balofos, chamados policiais, apareceram. Não perguntaram, repreenderam o direito de liberdade de expressão com socos, o direito de ir e vir jogando-o no camburão. Mais tarde, acordaria numa cela úmida, achando que fora só um sonho. Mas era ele lá preso. Detento Washington de Sousa.