20081109

Cadeira de Balanço

"CADEIRA DE BALANÇO é móvel da tradição brasileira que não fica mal em apartamento moderno. Favorece o repouso e estimula a contemplação serena da vida, sem abolir o prazer do movimento. Quem nela se instale poderá ler estas (...) mais a seu cômodo"
Carlos Drummond de Andrade
Dona Edônia comprou uma cadeira de balanço. Juntara durante alguns meses os trocados que sobrava em casa os quais ninguém dava falta. Os trocos do mercado que o marido esquecia. Na última semana até pedira certa quantia emprestado para o filho mais velho. Pagaria em prestações. As cadeiras de balanço quase acabaram na cidade antes dela comprar. Cobiçavam-se sempre que aproximavam-se. Mas não se sabia quem cobiçava mais a quem. Se a cadeira, a Edônia. Se Edônia, a cadeira. Mas depois de quatro meses e dois terços de mês compraram-se.

Na loja, a entrega para uma terça-feira. Das 16 horas às 18. Horário bom: pois os filhos na escola e no trabalho, o marido no trabalho. Assim, todos os cantos da casa seus e da cadeira. Onde melhor? A casa, nem medíocre nem luxuosa. Típica casa de bairro de cidade do interior. Terreno quadrado, garagem à direita da casa, na entrada jardim, no fundo quintal espaçoso e gramado. Dentro: dois quartos compridos, dois banheiros, sala, cozinha, varanda com aparelhos de limpeza. A vida ali, boa e calma; próximos ao trabalho do pai e do filho, e das escolas dos dois filhos. Lugar onde a vida, ainda que presentes as dificuldades e os problemas e as incertezas, vida.

Chegou adiantada, logo após o almoço. Edônia pediu que deixassem entre o jardim e a porta da frente. Testou-a por toda a casa, cada canto. Em seu quarto. Na sala. De frente para a rua. Na garagem. No banheiro. E nada que gostasse. Cansou-se. A cadeira tinha um estofado denso e macio, e agora estava parada no meio da sala. Foi tomar um café. Comer um bolo. Mais tarde arrumaria seu canto para sua cadeira. SUA cadeira. Nem sentara nela ainda. Até agora só olhava-a. A primeira vez que se sentaria nela seria num lugar onde ficaria para sempre. Seu pensamento era como se tivesse comprado um caixão. Mas aquele seria SEU conforto. SEU momento. SEU cantinho. SEU caixão.
Anos cuidando dos filhos e do marido se revoltaram de uma só vez naquela cadeira de balanço. Procurando um espaço para si. Seu Tempo para si. E teria naquele dia. Naquela cadeira. Só ainda não sabia onde. O tempo ventava. Vento bom para estender as roupas. Foi estendê-las.
Em seu quintal as roupas já esperavam. Esquecera-as quando a cadeira chegou. Ao fim, estendeu-as. Ao voltar a vista para casa viu a varanda como um ótimo lugar para SEU prêmio. Desta vez, já cansada, arrastou forçosamente a cadeira até o local admirado. Antes de se sentar, de iniciar sua nova vida, verificou qual vista teria sentada: à frente à direita, no quintal, as roupas que estendera, sendo balançadas por um Oeste. À esquerda, sua pequena e tosta horta, onde uma bagunça de insetos tentavam dividir aquilo que já haviam invadido. À esquerda e à frente, bem ao fundo, por trás do muro do quintal, por trás da rua de trás, por trás do bairro, uma gigante montanha verde-escuro com um cume muito alto.

Sentou-se.
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Respirou o ar fundo. Fechou os olhos. Ao fim da longe expiração a primeira lágrima caia. Em sua cadeira sentia-se dona de si. Via que construira algo para ela própria. Sentia-se reconfortada sabendo que algum resultado de seus esforços era para ela mesma. Os filhos crescem e se vão. O amor vira vida e depois rotina e depois dois. Mas sua nova cadeira de balanço não. Aquela não era a cadeira mais confortável que já se sentara, mas ali, naquele momento, era a cadeira mais confortável que já se sentara!

Ao abrir os olhos viu que aquele Oeste que vinha da montanha, agora cinza, era chuva. Já marcava quase 17 horas e o sol já sumira. Por trás da montanha as nuvens escuras já chegavam às casas do bairro, porém sem pingar. Os relâmpagos eram visíveis, delineavam a montanha por detrás dela. Um silêncio de fim de tarde. Edônia via que cedo ou tarde teria que tirar as roupas do varal. Mas queria prolongar o momento em sua cadeira de balanço por mais alguns minutos. Horas. Dias, A vida, se pudesse. Aquilo era tudo o que não fizera em sua vida. Tirar um tempo para si. Pedir para a vida esperar. Para aproveitar. Elogiar o ócio, a tranquilidade e a própria vida.

E agora, aquela enorme velha montanha lhe mandaria chuva? Lhe queria tirar a vida? Aquela velha, que já tivera a sua, tirava a vida que restava desta outra velha? Ela que sempre acompanhou de longe minha vida. Quê queria esta montanha com esta chuva? Quê queria esta montanha ao regar-lhe?

Enquanto isso, a grossa parede de gotas se mostrava e descia as íngremes encostas da montanha. O vento, agora mais forte, quase arrancavam as roupas do varal. E Edônia continuava sentada. As vizinhas que tinham arriscado as roupas já tinham tirado-as de lá. O vento trazia o mudo d'água rapidamente. E Edônia sabia tudo o que podia acontecer. Molhar as roupas. Molhar a casa, as portas e janelas abertas. Molhar-se. Seria um trabalho imenso, depois. Mas valia a pena.

E como iria explicar para os filhos? Para o marido? Como iria explicar-se a si mesma quando cair em si? As perguntas apareciam em sua cabeça, mas logo se dissipavam. Pois estava ali. Entregue à si mesma. Entregue à sua vida. Entregue à sua cadeira de balanço.

Ao ver a chuva atingir o telhado do vizinho de trás, fechou os olhos. Colocou as mãos nos braços da cadeira e balançou. Sentiu o vento forte nos cabelos. Ouviu o barulho das portas, das janelas, baterem com o vento. O barulho dos pingos em seu quintal. O cheiro da grama e da terra molhava. Respirou fundo. Ao fim da longa respiração, já se confundiam lágrimas com gotas de chuva. Soluços com pingos no chão. Montanhas com nuvens negras. Cadeira de balanço com caixão.

20081106

É difícil, Malatesta!

02h25 da madrugada. Edifício Malatesta. Lugar que sediava diversos bancos, grandes imobiliárias, financeiras e outras empresas. O porteiro mais velho do setor CE-10, ou seja, entrada do elevador do 10º andar, dorme numa cadeira incômoda, com os pés em cima da mesa ao lado de um pequeno rádio FM. Toca uma ópera. O porteiro mais moço fora fazer sua ronda, ou seja, 45 minutos andando sozinho pelo andar.
Apesar de gostar do colega de trabalho mais velho, estes eram os 45 minutos que mais aproveitava da noite. Esta ronda era função de todos os seguranças do andar, exceto o chefe. Era tudo muito bem dividido. A cada 45 minutos um segurança saia de seu setor para fazê-la. Portanto, eles mal se viam. Cada segurança só conhecia os colegas de seu próprio setor. No caso deste porteiro mais moço, conhecia somente o chefe, o mais velho. O setor CE-10 contava somente com os dois funcionários.
Durante os 45 minutos mais rápidos de sua noite, o porteiro mais moço olhava cada parte, cada parede, analisava cada desenho daquele andar. Às vezes, andava pelo andar com a lanterna apagada, com o mapa dele na mente. Achava o prédio enorme diante de si. Achava-o uma opulência sem nome. Achava-o divino. Na realidade, o segurança mais moço não sabia o que segurava ali. Mas estaria pronto a enfrentar qualquer ameaça àquele prédio. Era como se fosse um museu. Era como se fosse sua contemplação dos resultados da vida. Da arte. Desde às 22h00 quando assumia o posto contava os minutos para os 45 minutos de exaltação da própria vida. Aos 40 minutos de ronda chegava ao vidro frontal do prédio. Prédio este que ficava no alto de um morro de frente à uma longa avenida. Como se a avenida fosse seu tapete vermelho para a cidade. Passava os 5 minutos restantes admirando a visão que tinha. Ele, no 10º andar do Edifício Malatesta e à sua frente uma avenida que descia rumo à cidade acesa. Via a cidade diante de si. Via a cidade aos seus pés. Via a arte da vida organizadora em seus desarranjos. Via tudo isto naqueles c-i-n-c-o m-i-n-u-t-o-s que mais pareciam 5min.
Voltara ao setor. O segurança mais velho fingia ter ouvido os passos do mais moço. Era a mesma coisa todo dia:

-Quê demora! Tava passeando pelo prédio, é? - essa raiva era a raiva de ter sido acordado. Aqueles 45 minutos também eram os minutos mais esperados do velho. Era o tempo que toda noite dormia escutando a mesma ópera que tocava no rádio. Nunca vira uma ópera, achava que eram músicas feitas para ouvir dormindo. Mas todo dia o moço quebrava este ritual. Daí a raiva.
-Eu tô trabalhando! - querendo dizer "Pelo menos não estou dormindo!", mas segurava, respeitando o chefe. - Sabe o que é, chefe? Eu gosto de ficar andando pensando na vida...
-Pensâ'ni'quê??? Só se for nos problemas... nas contas...
-Não é isso, chefe! Eu gosto de aproveitar este tempo pensando... ah, pensando nas coisas...
-Olhe! Você sabe que eu gosto do seu serviço, e por isso não falo nada pro superior, mas isso é coisa de gente avuada, coisa de vagabundo!
-Quê isso, chefe? Não é vagabundagem minha, não! Não é corpo-mole! É que eu gosto de andar por aí tentando achar as arte que tem na vida...
-Aah, de arte eu gosto! - mas pensava n'outra coisa. Pensava na arte que seu ronco fazia enquanto tocava a ópera. Encontou a cabeça na parede e recruzou os pés sobre a mesa. Era quase um pedido para deixá-lo dormir mais.
-Então, chefe! Quem faz arte não é vagabundo, avuado...
-Óia, e falando nisso, meu fio começou umas aula de violão uns meis'á'trás... tocava que era uma beleza! Tava no começo ainda, coitado! E vinha me mostrar o que aprendia... pena que acabou!
-O quê? O Curso?
-Não, ele parou de ir no curso de violão, tinha que fazer SENAI, e ficava puxado, né!
-Olha'í, chefe! Teu filho é um artista!
-É, mas alguém tem que trabalhar, né?! E não sou eu que vou ficar sustentando ele, trabalhando, suando - no discurso, esquecia que trabalhava a noite e dormia no trabalho - enquanto ele toca violão!

Silêncio. O mais moço sente que devia falar algo.

-É foda! Os políticos não fazem nada prá essa gente que precisa! Seu filho podia até tocar numa orquestra que nem essa! - enquanto o moço aponta com um movimento do queixo para o rádio, o velho pensa que seu filho não ia ficar tocando para os outros dormirem -. Mas não! Esses políticos não ajudam ninguém! Chefe, segura o posto aí que eu preciso mijar...

O velho ficou ali sozinho. Na mesma posição que quando acompanhado. Agora, pousou os olhos no canto da parede em sua frente. Pensara que a chance do filho virar artista estava mais próxima. Que não era só uma brincadeirinha dele. Que o SENAI estragava o sonho do filho. Que os políticos podiam dar uma chance pro filho dele, podiam ajudá-lo. Mas não! Político não fazia nada. Se ele pudesse, faria algo! Isso, faria algo pelo filho! Mas como segurança não dá! O que podia fazer? Só se fosse político...
O moço volta. O velho pergunta:

-E o que você acha dos político?
-Tudo ladrão!
-Mas num é assim... o problema é que político tem que trabalhar igual a gente primeiro, depois virar político - já pensando em sua candidatura!-.
-Mas até parece, chefe!- rindo - Eles têm pai...
Ficou irritado. Queria gritar "Tá dizendo que meu filho não tem pai???", mas achou melhor reconsiderar:
-Mas se trabalhassem dariam valor!
-Mas se trabalhassem não virariam políticos!
-Mas eu vou virar político!
-Hahahah... e dinheiro, chefe? Precisa de dinheiro prá se candidatar, prá fazer campanha...- o mais velho percebera a besteira que, por um instante, sonhara - Se você virar político, eu viro artista! - e balançava a mão como se estivesse regendo o rádio-, aliás, nós dois somos artistas: eu da música, e você da mentira - gargalhando alto.
-E num é que é mesmo, rapaz... vi na TV um caso de um candidato que bateu no cidadão no meio da rua, todo mundo vendo e filmando! Mas aí o cara-de-pau safado não disse que apanhou primeiro?!? Tinha que amarrar um cabra desse no pelourinho e dar chicotada de tripa de carneiro, igual fazia na minha terra!
-Opa! Tem que acabar mesmo com essa raça!
-Óia, rapaz! Te contar uma coisa... eu queria era mesmo arranjar um jeito de meu filho conseguir tocar... mas é difícil, cê sab'com'é! Tanta conta prá pagar, a comiga, a casa... Imagina, rapaz, meu filho lá no palco... tocando violão... todo chique... todo todo! Óia, se isso desse certo, eu largaria essa guarda aqui e ia lá tocar com ele... Largava meus sete anos de labuta aqui e subia num palco! Imagina! Eu e ele, feito dupla sertaneja!!! Tocando prá todo mundo ver! Êêê beleza!
-Óia só, chefe, até você querendo ser artista!
-Ah, rapaz, ia acompanhar meu filho... e você, gostaria de tocar também?
-Pô, chefe, vou te contar... Eu com música não dá certo não! Não bato nem lata! - pára e pensa, o silencio se mantém durante o i t o o u n o v e s e g u n d o s ...- Mas tem uma coisa que eu faria se largasse meu posto aqui! Queria ter uma orquestra diferente. Queria tocar uma construção, chefe! Tocar aquelas máquinas gigantes. Mandar trator prá lá, britadeira prá cá, mandar cava, mandar destruir... Construir uma ponte por cima do rio, ou um prédio alto prá toda cidade ver... Isso sim que é orquestra, hein chefe!
-É, rapaiz!


O assunto acaba entre os dois. Mas as ilusões ficam na mente de cada um. Pensam a diferença entre sonho e realidade. Refletem sobre sua vida, o sentido do que fazem t o d o s o s d i a s i n t e r m i t e n t e m e n t e e naturalmente, como se precisassem daquilo para as próprias vidas. E, porumínfimoinstante, vivem:
-Rapaz... hoje me descobri artista, e você construtor, hein!
Mas a vida sempre passa. Sempre deixa mancha de si mesma no mundo. Uma mancha que não é vida. Uma mancha é palavra, é fração. Fica o esboço. Vão as vidas e as ilusões.

20080920

Anos Incríveis

"eu quis querer o que o vento não leva
prá que o vento só levasse o que eu não quero.
eu quis amar o que o tempo não muda
prá que quem eu amo não mudasse nunca."
Um pequeno imprevisto - Thedy Correia/Herbert Vianna


Meu amigo Jeremias cantava isso enquanto andávamos meio sem rumo pela cidade. Discutia sozinho sobre o tempo que passa, que leva, que muda. Não sabia a nostalgia que me trazia essa música. Não sabia que eu já vivera a música. E agora, vivia novamente. Ela, como algumas outras, me lembrava as viagens, meus pais, meu irmão e minha irmã. Mas ela tinha tudo isso em si. E nisso viajei..



Quando éramos mais novos e menos decididos, e meus pais mais ativos, viajávamos, ao menos, uma vez por ano para algum lugar. A cada dois anos visitávamos os avós. E as viagens entre esta ou era para a praia, ou para o camping, ou para a casa de algum familiar no interior. Era sempre, sempre a mesma empolgação, a mesma mágica, o mesmo encantamento de ir viajar. Desde o pronunciamento oficial: "Vamos viajar!" até a chegada ao local combinado era um ritual único. Arrumar a casa! Espalhar as roupas na cama! Escolher as roupas! Arrumar as malas! Arrumar o quarto! Escolher as músicas prá ouvir. Gravar o que quiser escutar em fitas (naquela época era muito caro ter CD-Player no carro). Nomear as fitas e colocá-las na bolsa de música. Tomar banho para dormir. Dormir cedo para acordar cedo no outro dia para viajar. Mal-dormir de ansiedade esperando acordar para finalmente viajar. Levantar às 5 horas da matina, pegar a mochila, a bolsa de roupas e correr para a saída. Enfrentar o olhar da mãe ao perguntar "Mas você tomou leite?". Largar tudo na porta, correr para a cozinha, tomar leite rápido e correr de volta para colocar as coisas no carro. E isso só prá sair de casa...

A viagem em si era a grande atração! Era o momento - por vezes dias - que podíamos aproveitar da presença um do outro. Era a hora de ser família. Naquele tempo eu não entendia os gritos entre meus pais; e nós, filhos, no banco de trás, continuávamos brincando, ou brigando. Nessas viagens conheci todas as 9 Luas, e muito mais coisas... Também era aí que conhecia meus irmãos. No dia-a-dia não éramos tão ligados, tão próximos. Mas nas viagens, talvez por ausência de outros ou por oportunidade, sentíamo-nos amigos. E mais, éramos irmãos. Presenciávamos a vida do outro como nossa. Divertíamo-nos. Dividíamo-nos!

Nossa última viagem como família já fazem uns 6 ou 7 anos. Foi da vez que quebramos o ritual e viajamos no meio do ano. Fomos ver os avós. Foram 3 dias de carro. Foi da vez que o carro quebrou no caminho e ficamos parados um dia todo para arrumá-lo. Nossos últimos 3 dias tão juntos. Tão próximos. Tão família. Hoje, tudo me recorda aquela viagem. A estrada. O pneu deslizando. O carro cortando divisas. As paradas nas cidades que achávamos interessante. Os mesmos restaurantes onde sempre comíamos e já conhecíamos os donos. Os mesmos hotéis onde passávamos a noite e já conhecíamos o quilômetro. Tudo...




...de volta, Jeremias já não falava mais nada. Éramos só os dois, andando numa madrugada de sábado de volta para o metrô. Madrugada esta que daria entrada à um dia que ficaria marcado na minha falha memória tanto quanto as nossas antigas viagens. Mas não pelos bons motivos. Eram bons individualmente. Mas eu assumira uma posição isolada, de fora, para esta data. Pois o que eu via era mais duas mudanças irrecuperáveis na família. Neste dia minha irmã caçula fazia 17 anos. É, ela não era mais uma criança. Mas quando ela era minha irmã, minha pequena, ela era uma criança. A princesinha da família. E desta última viagem para cá ela cresceu, e cresceu... aconteceram coisas que o dia-a-dia nos impossibilita ver, e só percebemos quando temos motivo para parar e pensar. Sempre me pego desesperado, perguntando "O que aconteceu? Onde eu estive esse tempo todo? Por que não participei do crescimento dela???". Pena ela ser muito pequena nos quandos das viagens... Queria trazer toda aquela mágica de volta prá ela... O outro motivo era a mudança definitiva do meu irmão, que começaria hoje. Comprara um apartamento no centro e já era hora de habitá-lo. Partiria com sua namorada. Já vivera bastante em família, pelo menos tentara. E eu sei que não foi fácil tentar... Também não sei até quando vou aguentar...
Eu estava entre eles. Eu estava entre isso. Entre o ser adulto e o assumir verdadeiramente esta responsabilidade. Entre o ter idade e o praticá-la. Entre o teórico e a vida. Será que minha amizade com o Jeremias seria assim, um dia, perdida? Só uma memória? Será que algo, um dia, me separará desse amigo que cantou a nostálgica música? Será que n'outra vez pensando no fugaz tempo que voa lembraria dele, e de algo que nos separou? Algum motivo para nos separar? Um bom motivo para isto! Algum imprevisto? Um pequeno imprevisto?

20080820

Homem de suor e honra

Enxada ao alto - Enxada no chão - Terra no monte.
Enxada ao alto - Enxada no chão - Terra no monte.
Enxada ao alto - Enxada no chão - Terra no monte.

Era a honra. Seu trabalho era sua honra. João Sem Nome preparava a terra para mais um plantio. Com sua enxada, seguia tirando a sobra de terra. Sua força; meio de alimentar a família. Como seu pai, servia uma rica família da região. A maior fazenda da região. Seus bens; a casa de herança, meio hectare de terra, duas cabeças de bois magros, uma vaca leiteira seca, três galinhas e a tradição da fome. Tradição que não há como fugir. Sabe o que já passou e não quer passar este tipo de lembranças para seus filhos. A construção de sua honra se dá em cumprir isto.

Pá para trás - Pá na terra - Terra no carrinho.
Pá para trás - Pá na terra - Terra no carrinho.
Pá para trás - Pá na terra - Terra no carrinho.

Seu esforço. Dedica a vida à sua honra. A não fazer dele o futuro de seus filhos. Não quisera estar ali, mas está. Não quisera muito na vida. Aceitava o que viesse para querer algo realmente grande. Algo que valesse toda e qualquer pena. Algo que valesse sua vida, seu trabalho, sua honra. E ali construía sua honra. Pois não queria continuar ali, em seus filhos. Seu suor, o suor era o maior sinal de sua honra. E seguia firme. Seguia.

Pexeira pro alto - Pexeira na palma - Palma pro lado
Pexeira pro alto - Pexeira na palma - Palma pro lado
Pexeira pro alto - Pexeira na palma - Palma pro lado

Quando vez ou outra seu suor cai na pexeira ele para. Observa o reluzir do sol no corte da pexeira enferrujada e na gota. Mexe a pexeira para os lados afim de brilhar todo o seu rosto. Aquela luz questionava algo nele. Aquele brilho na gota mostrava que havia algo maior que a vida ali na terra. Questionava sua vida. Eram seus 27 segundos de filosofia existencialista. Depois seguia o corte.

A noite sentava sobre ele, e ele a observá-la.

A cabeça na vida. A fome na barriga. A família com fome. A família com fome. Sua honra perdida. Ele era sua honra. Tudo aquilo por sua honra. E dessa honra, nada sobraria. Não mais havia honra. Os filhos herdariam a casa, o trabalho, a fome, a ininterrupta tradição. E a honra?