02h25 da madrugada. Edifício Malatesta. Lugar que sediava diversos bancos, grandes imobiliárias, financeiras e outras empresas. O porteiro mais velho do setor CE-10, ou seja, entrada do elevador do 10º andar, dorme numa cadeira incômoda, com os pés em cima da mesa ao lado de um pequeno rádio FM. Toca uma ópera. O porteiro mais moço fora fazer sua ronda, ou seja, 45 minutos andando sozinho pelo andar.
Apesar de gostar do colega de trabalho mais velho, estes eram os 45 minutos que mais aproveitava da noite. Esta ronda era função de todos os seguranças do andar, exceto o chefe. Era tudo muito bem dividido. A cada 45 minutos um segurança saia de seu setor para fazê-la. Portanto, eles mal se viam. Cada segurança só conhecia os colegas de seu próprio setor. No caso deste porteiro mais moço, conhecia somente o chefe, o mais velho. O setor CE-10 contava somente com os dois funcionários.
Durante os 45 minutos mais rápidos de sua noite, o porteiro mais moço olhava cada parte, cada parede, analisava cada desenho daquele andar. Às vezes, andava pelo andar com a lanterna apagada, com o mapa dele na mente. Achava o prédio enorme diante de si. Achava-o uma opulência sem nome. Achava-o divino. Na realidade, o segurança mais moço não sabia o que segurava ali. Mas estaria pronto a enfrentar qualquer ameaça àquele prédio. Era como se fosse um museu. Era como se fosse sua contemplação dos resultados da vida. Da arte. Desde às 22h00 quando assumia o posto contava os minutos para os 45 minutos de exaltação da própria vida. Aos 40 minutos de ronda chegava ao vidro frontal do prédio. Prédio este que ficava no alto de um morro de frente à uma longa avenida. Como se a avenida fosse seu tapete vermelho para a cidade. Passava os 5 minutos restantes admirando a visão que tinha. Ele, no 10º andar do Edifício Malatesta e à sua frente uma avenida que descia rumo à cidade acesa. Via a cidade diante de si. Via a cidade aos seus pés. Via a arte da vida organizadora em seus desarranjos. Via tudo isto naqueles c-i-n-c-o m-i-n-u-t-o-s que mais pareciam 5min.
Voltara ao setor. O segurança mais velho fingia ter ouvido os passos do mais moço. Era a mesma coisa todo dia:
-Quê demora! Tava passeando pelo prédio, é? - essa raiva era a raiva de ter sido acordado. Aqueles 45 minutos também eram os minutos mais esperados do velho. Era o tempo que toda noite dormia escutando a mesma ópera que tocava no rádio. Nunca vira uma ópera, achava que eram músicas feitas para ouvir dormindo. Mas todo dia o moço quebrava este ritual. Daí a raiva.
-Eu tô trabalhando! - querendo dizer "Pelo menos não estou dormindo!", mas segurava, respeitando o chefe. - Sabe o que é, chefe? Eu gosto de ficar andando pensando na vida...
-Pensâ'ni'quê??? Só se for nos problemas... nas contas...
-Não é isso, chefe! Eu gosto de aproveitar este tempo pensando... ah, pensando nas coisas...
-Olhe! Você sabe que eu gosto do seu serviço, e por isso não falo nada pro superior, mas isso é coisa de gente avuada, coisa de vagabundo!
-Quê isso, chefe? Não é vagabundagem minha, não! Não é corpo-mole! É que eu gosto de andar por aí tentando achar as arte que tem na vida...
-Aah, de arte eu gosto! - mas pensava n'outra coisa. Pensava na arte que seu ronco fazia enquanto tocava a ópera. Encontou a cabeça na parede e recruzou os pés sobre a mesa. Era quase um pedido para deixá-lo dormir mais.
-Então, chefe! Quem faz arte não é vagabundo, avuado...
-Óia, e falando nisso, meu fio começou umas aula de violão uns meis'á'trás... tocava que era uma beleza! Tava no começo ainda, coitado! E vinha me mostrar o que aprendia... pena que acabou!
-O quê? O Curso?
-Não, ele parou de ir no curso de violão, tinha que fazer SENAI, e ficava puxado, né!
-Olha'í, chefe! Teu filho é um artista!
-É, mas alguém tem que trabalhar, né?! E não sou eu que vou ficar sustentando ele, trabalhando, suando - no discurso, esquecia que trabalhava a noite e dormia no trabalho - enquanto ele toca violão!
Silêncio. O mais moço sente que devia falar algo.
-É foda! Os políticos não fazem nada prá essa gente que precisa! Seu filho podia até tocar numa orquestra que nem essa! - enquanto o moço aponta com um movimento do queixo para o rádio, o velho pensa que seu filho não ia ficar tocando para os outros dormirem -. Mas não! Esses políticos não ajudam ninguém! Chefe, segura o posto aí que eu preciso mijar...
O velho ficou ali sozinho. Na mesma posição que quando acompanhado. Agora, pousou os olhos no canto da parede em sua frente. Pensara que a chance do filho virar artista estava mais próxima. Que não era só uma brincadeirinha dele. Que o SENAI estragava o sonho do filho. Que os políticos podiam dar uma chance pro filho dele, podiam ajudá-lo. Mas não! Político não fazia nada. Se ele pudesse, faria algo! Isso, faria algo pelo filho! Mas como segurança não dá! O que podia fazer? Só se fosse político...
O moço volta. O velho pergunta:
-E o que você acha dos político?
-Tudo ladrão!
-Mas num é assim... o problema é que político tem que trabalhar igual a gente primeiro, depois virar político - já pensando em sua candidatura!-.
-Mas até parece, chefe!- rindo - Eles têm pai...
Ficou irritado. Queria gritar "Tá dizendo que meu filho não tem pai???", mas achou melhor reconsiderar:
-Mas se trabalhassem dariam valor!
-Mas se trabalhassem não virariam políticos!
-Mas eu vou virar político!
-Hahahah... e dinheiro, chefe? Precisa de dinheiro prá se candidatar, prá fazer campanha...- o mais velho percebera a besteira que, por um instante, sonhara - Se você virar político, eu viro artista! - e balançava a mão como se estivesse regendo o rádio-, aliás, nós dois somos artistas: eu da música, e você da mentira - gargalhando alto.
-E num é que é mesmo, rapaz... vi na TV um caso de um candidato que bateu no cidadão no meio da rua, todo mundo vendo e filmando! Mas aí o cara-de-pau safado não disse que apanhou primeiro?!? Tinha que amarrar um cabra desse no pelourinho e dar chicotada de tripa de carneiro, igual fazia na minha terra!
-Opa! Tem que acabar mesmo com essa raça!
-Óia, rapaz! Te contar uma coisa... eu queria era mesmo arranjar um jeito de meu filho conseguir tocar... mas é difícil, cê sab'com'é! Tanta conta prá pagar, a comiga, a casa... Imagina, rapaz, meu filho lá no palco... tocando violão... todo chique... todo todo! Óia, se isso desse certo, eu largaria essa guarda aqui e ia lá tocar com ele... Largava meus sete anos de labuta aqui e subia num palco! Imagina! Eu e ele, feito dupla sertaneja!!! Tocando prá todo mundo ver! Êêê beleza!
-Óia só, chefe, até você querendo ser artista!
-Ah, rapaz, ia acompanhar meu filho... e você, gostaria de tocar também?
-Pô, chefe, vou te contar... Eu com música não dá certo não! Não bato nem lata! - pára e pensa, o silencio se mantém durante o i t o o u n o v e s e g u n d o s ...- Mas tem uma coisa que eu faria se largasse meu posto aqui! Queria ter uma orquestra diferente. Queria tocar uma construção, chefe! Tocar aquelas máquinas gigantes. Mandar trator prá lá, britadeira prá cá, mandar cava, mandar destruir... Construir uma ponte por cima do rio, ou um prédio alto prá toda cidade ver... Isso sim que é orquestra, hein chefe!
-É, rapaiz!
O assunto acaba entre os dois. Mas as ilusões ficam na mente de cada um. Pensam a diferença entre sonho e realidade. Refletem sobre sua vida, o sentido do que fazem t o d o s o s d i a s i n t e r m i t e n t e m e n t e e naturalmente, como se precisassem daquilo para as próprias vidas. E, porumínfimoinstante, vivem:
-Rapaz... hoje me descobri artista, e você construtor, hein!
Mas a vida sempre passa. Sempre deixa mancha de si mesma no mundo. Uma mancha que não é vida. Uma mancha é palavra, é fração. Fica o esboço. Vão as vidas e as ilusões.
Interessante como 45 minutos são esperados de formas diferentes. Como os sonhos são diferentes e como sonhar é brincadeira para a realidade inexoravel...
ResponderExcluirO lance do SENAI me lembrou muito minha adolescencia... ainda bem que não precisei parar de tocar...
E assim prossegue a vida no edifício Malatesta e nos outros também... baita conto, meu!
ResponderExcluirAbraço!