20141128

de doses em doze

cabe o mundo todo
num copo d'água.

disse a ela que as coisas não terminam
de uma hora
para outra,
que o amor é maior que a posse,
e que era o tempo passar
para as duas voltarem,

mas não importavam as palavras,
tinha que estar ali, ouvindo
o choro e tentando provocar
algum riso.
buscar a desatenção com assunto
que não para de aparecer na cabeça.

como aquela dor de dente
em noite de insônia
precisa ser esquecida com
qualquer filme.

passeamos e rimos.
sentamos, comemos
e quase choramos.

dei-me conta da não-volta do casal
e da dependência dela.
e
ao invés de um copo d'água,
pedimos duas doses de uísque com gelo.
bebemos rápido,
corremos dali para o primeiro programa
de balada da noite.

outras doses.
outras baladas.
a mesma noite.
transamos;
com outras pessoas,
também.

a ressaca curou o coração tão empenhada
como a bebedeira na destruição do fígado.


3 dias depois voltaram, 4 semanas terminaram, 12 meses nos juntamos.


mas vários mundos 
em doses de uísque.



20141127

de encontros

eu lembro que você disse:
- precisamos nos ver.
vamos marcar alguma coisa,
e conversar das coisas
passadas.

eu sabia que nunca iria acontecer.
sei que seus encontros -
semelhantes às suas promessas -
são mais furados que as botas.

ainda assim falamos de um amigo
ou dois,
e papeamos como se tudo fosse só
aquilo:
papear.

tempos depois, encontramo-nos.
eu a trabalhar a noite,
você estava de férias querendo viajar.
foi um só sopetão.

oi-quanto tempo-beijo-bochecha-tá indo prá onde?-vou prá lá-beijo-bochecha-precisamosmarcaraquelalá-tchau,viu!?.

não parece mais.
não é, de fato, mais
nem menos.
é só o que sobra para
a corrida
do hoje.




20141126

travestismo

e quê fazer quando você cansou
da sua cara?
quando já não mais
quer ou
importa
mudar o cabelo, fazer
a barba ou trocar
os óculos.

apaixonei-me por uma moça sentada
no assento preferencial do metrô.
não só a beleza, mas
o movimento leve de se levantar para o cego e
conduzi-lo ao banco;
e também o descontraído de puxar
a calcinha enfiada na bunda.

não foi sexy. foi natural.
foi como todos faríamos.

pensei se eu poderia vesti-la em mim.
se poderia falar para ela
- olá, você não me conhece. mas
eu gostaria de ter a sua face, seu corpo, sua casca.
vamos trocar?

e talvez até explicar todo o cansaço, toda a
vida, quiçá todos os problemas; e também ouvir
tudo o que aquela forma lhe incomodava,
o que lhe traz nas ruas e zanga.

queria saber, ainda, se - e como - a forma
transforma o conteúdo.
e de que jeito eu mudaria meu interior
travestido naquela carcaça de
moça do banco preferencial.
talvez seria uma forma de apaixonar-me
por mim mesmo n'outra pessoa.

e quem sabe, mais rápido que a palpitação cardíaca,
eu me apaixonasse n'outra pessoa novamente,
n'outro vagão ou n'outro caminho,
e quisesse refazer este escambo...

tal qual ator,
cresceria em minha vivência
tendo a forma alheia somando
o conteúdo.
tal qual humano,
aprendendo com a experiência
dos outros.

20141111

em águas

naquela manhã,
enquanto ainda abraçados
eu teria dito que te amo.
mas você bem sabe que 
eu não gosto das palavras prontas e com 
um só sentido.
no lugar disso, disse
que
estava sem ar.
 e logo após sua cara de susto:
- sem ar, por me sentir
deliciosamente afogado
em você.
que sorriu.
teria dito que me ama,
mas não pensou coisa
à altura para responder
rapidamente.
beijou-me,
como um ás na manga,
e amamo-nos de novo.

o dia correu.
melhor: escorreu,
como você escorrera
em meus lábios mais cedo,
no calor da carne,
lábio a lábio.
e continuava ali, na minha carne,
o resto do dia,
em sensações que desenham
a ausência,
nas mãos que buscam tocar
o cálido corpo,
na ereção fortuita no ônibus,
no almoço solitário mas
sorridente,
e no desejo de estar sonhando
só para acordar de novo ao seu lado,
afogado.

O guardador

Carrego comigo
roupas sujas, cadernos, algumas moedas, pares de camisinhas e alguma coisa mais que eu, por ventura, tenha esquecido.


Repare!

Não falo de um punhado de sonhos,
dos quilos de frustrações,
das questões vitais filosóficas e materiais que me atormentam,
dos desejos para amanhã ou depois ou ano que vem,
quanto menos,
daquilo que me cabe fazer com o agora.

Falo,
direta e
precisamente,
daquilo que me coube na mochila.