20140521

Torpor



Era como se eu não tivesse acordado, mas a náusea e a dor de cabeça diziam que sim. Vieram-me as ideias antes das coisas, e as duas primeiras eram onde eu estaria e como chegara ali. A primeira foi respondida quando vieram-me as coisas: o gramado que estava deitado, ao lado de uma avenida sob um viaduto. Reconheci por já tê-la visto de cima, do viaduto. O gramado, nem sabia da existência, diferente das outras pessoas que se levantavam de seus aposentos.


A segunda dúvida não sabia como tirar. Lembrava-me somente das drogas no dia anterior. Talvez algo mais... de uma sensação estranha de algo passando bem próximo ao meu corpo, enquanto estava inerte desacordado, chegando a encostar em minhas roupas com uma sutileza felina. Mas isto bem antes de o sol começar a despontar e fechar minhas pupilas, também meus olhos.


Não sabia o que teria mexido comigo, se algum animal, ou inclusive se tinha sido real mesmo. No entanto, uma primeira desconfiança percorreu-me ao perceber meus bolsos vazios, sem mesmo minhas chaves. Teria perdido na bebedeira? Ou talvez nas apostas no bar? Muitas coisas para responder, mas as memórias eram ineficientes para. Teria eu que percorrer o mundo perseguindo meu passado.

Antes,
uma olhada em volta.

Percebo, ainda na dificuldade em abrir os olhos. Num canto, alguns policiais já tentando expulsar os mendigos que, como eu, dormiam nessa praça-gramado-sejá lá o que for sob o viaduto. Sem pressa, inquiriam os cidadãos-moradores-nômades-seja lá o que for sobre suas vidas, suas famílias, seus trabalhos, seus vícios; revistando um por um, bagunçando suas trouxas-residências-pertences-seja lá o que fosse, depois, passavam ao próximo...
Sentei-me para olhar ao redor e tentar reconhecer algo que pudesse fazer, pelo menos enquanto havia tempo sem os policiais me perceberem e virem encher o saco.

A praça. Larga, embaixo do viaduto, partes em grama, partes em entulho, comprida, desde a base da subida do viaduto até o cruzamento desta avenida contígua com outra, maior, onde estavam os agentes da lei fazendo suas apreensões matinais. Eu, no meio daquilo tudo, vejo uma espécie de barraco encostado na parede de base do viaduto, com um homem sentado numa cadeira de encosto, despreocupado com o que havia às suas costas. Penso que talvez ele soubesse de algo que me ajudasse; ou, pelo menos, se eu chegara sozinho; ou que horas; ou se estava mesmo acordado.

O levantar-se se torna mais difícil quando as dores no corpo atacam os enjôos e, repentinamente, seu estômago vem parar na goela. Curvo-me sobre meu âmago tentando devolver as tripas aos seus lugares. Nisso, uma tosse antiga, seca, dolorosa, se faz presente; aquela que já tinha machucado o peito, a garganta e o pulmão, de tão insistente.


Para tentar recobrar a respiração, sentei-me novamente, talvez um tempo útil para ensaiar a abordagem ao homem sentado na cadeira de encosto. A essas horas não sabia como conseguira dormir naquele chão úmido da grama, e frio do vento. Relembrou-me a constante contorção noturna que o frio provocara; parecia que o vento gelado cortante vinha de cima e de baixo, sem ter como fugir de quaisquer de suas rajadas.
Ao observar melhor o homem, reparo uma movimentação conhecida e facilmente decifrável: alguns jovens veem até ele casualmente e afastam-se, encontrando alguns carros ou pessoas em uma esquina ou rua próxima, trocando pacotes. Talvez fosse minha resposta. Talvez o elo para explicar minha estada ali. Mas talvez pudesse explicar minhas dores no corpo, a tosse, a náusea. Talvez, perigo.




Desse modo, observo.

 
Vejo vários moleques irem e virem com as encomendas. A ironia: a polícia ainda no começo da praça, no lado oposto, acordando alguns mendigos desavisados. Fico pensando a situação à qual são expostos, estes aviõezinhos, perigo de tomar porrada, ficar internado, serem vitimados em guerra por espaço ou por milícias ou pelos policiais ali ao lado... Percebo meu engano só depois de ver o homem sentado na cadeira de encosto levantar o braço direito e olhar - sem movimentar a face ou os olhos – para os policiais ali do outro lado da praça. Depois de algumas dezenas de segundos, os olhares se encontram, o braço é abaixado, e então os representantes da segurança pública afastam-se das moradias, sobem em sua motos e tomam seu rumo embora. O sistema estava todo completo e não havia contradição, apenas permissões de ambos os lados. Coexistência. Talvez o melhor para os dois mundos. O seu sentido só se encontra na existência una do outro, como a vida, que só ganha sentido quando aponta seu fim, para fazer pensar.

Ainda sentado, acho que chegou a hora de caçar sentido no meu dia. Um breve papo com o homem sentado na cadeira de encosto poderia me explicar muita coisa e, outra: o que teria a perder mesmo, além da vida? A cadeira de encosto está virada em minha direção; não fosse um moleque na frente conversando com ele, eu conseguiria olhar em seus olhos e estabelecer aquele contato visual inicial necessário para percebermos um ao outro. Tento ensaiar duas ou três frases que não sejam muito agressivas nem muito questionadoras a ponto de eu parecer louco mas o suficiente para eu tirar minhas dúvidas sendo que não queria acusar ninguém... desisto! O olhar nos olhos me traria o que dizer, a relação só poderia ser feita assim!

Olho por cima do ombro do moleque, para tentar olhar o homem sentado na cadeira de encosto logo que o primeiro andasse. Assim, um olhar fixo e inesperado vindo de mim já me poria numa situação de segurança, como se eu estivesse premeditando seus movimentos, como se eu estivesse preparado para qualquer coisa. Coisa mais falsa. Mas este moleque tinha apenas que andar para eu conseguir contato visual. Mas não andava.

Não imagino o que tanto falavam, mas podiam dar esta chance a um cara que só tinha os olhos e a esperança como últimas armas. Se esse moleque andasse, eu teria uma saída, talvez até conseguisse meus documentos, chaves, carteira, por meio dessa conversa, alguma dica que o homem sentado na cadeira de encosto me desse; assim não teria que andar 30 km, ou pedir caronas nos transportes, ou sei lá mais o quê...

O moleque dá alguns passos para trás e percebo os gestos de fim de conversa. Já é hora de eu me levantar, pois se olhasse fixamente e andasse em sua direção, estaria mesmo em posição superior. No que eu vou me levantar, me apoio com o braço direito no chão e percebo machucados em minha mão, mas não posso me preocupar com isto agora. Ao que torno minha visão para o homem, vejo somente o garoto me olhando e andando em minha direção. No momento do contato de nossos olhos, do garoto e meus, uma falta de ar, seguida de forte tosse e as dores no fim da garganta, que me impedem de levantar, e caio sentado de lado, novamente.

Daqueles 100 metros que nos afastavam, quase metade já corria às suas costas. Somente agora percebia o garoto como algo real: quase 1,70 de altura, um jeito atarracado, mas largo, de traços negros e cor parda escura. Mas o que facilmente se notavam eram os braços, longos, tão, que pareciam chegar aos joelhos, se soltos. Uma mão no bolso e outra com uma sacola fechada. Chinelos de dedo com as solas quase em fatia. Bermuda marrom rasgada, provavelmente o que sobrara das calças, e uma camiseta amarela. Mastigava algo com o olhar fixo em mim, andando devagar, por vezes tropeçando em sua própria lentidão. Eu, assustado, em posição de vítima de espancamento, tossia. E tossia. E de novo. Olhei a roupa: pingos de sangue. O susto daquele garoto em minha direção e o susto do sangue somavam-se em minha tosse. O que ele podia querer? Já chegando aos 20 ou 15 metros de mim ele parou.


Ainda olhando fixo, escolheu um raio em minha volta e começou a andar. Cuspiu aquilo que mastigava, que notei ser uma tampa de bic. Naquele momento não sabia ao certo o que fazer, mas sabia da impossibilidade física de correr, somado ao orgulho moral da covardia sem nem saber o motivo. Restava-me apenas encarar, talvez não ele, mas o destino.

O garoto antes de completar um quarto de volta de mim, começou a se aproximar, como se eu tivesse gravidade própria, mas sem sair de seu raio elíptico. Finquei os pés no chão e olhei o horizonte, agora de pé. A adrenalina curou a tosse, mas a falta de equilíbrio vinha testemunhar minha fraqueza e cansaço.

A coisa mais racional que pensei na hora era tentar derrubar o garoto e correr para falar com o homem sentado na cadeira de encosto, antes que o garoto chegasse a mim. Ele se aproximava, com os olhos em chamas, até que a dois passos de mim, ele me olhando com o queixo alto, assumo meus braços em posição de luta e também tento rodeá-lo. Os soluços de tosse vinham, mas o nervosismo não me deixava notar. Eu, de cima da calçada e ele na rua, de braços baixos, acerto uma direita muito em cheia em sua bochecha. Pensei em correr, mas não podia dar-lhe as costas facilmente; se ele caísse, correria. O corpo foi para trás, bambeou desequilibrado. Cairia, não fosse a perna esquerda de apoio que não deixou o corpo esfacelar-se.  

A face nada refletia o golpe e seus passos à frente me faziam crer que eu estava perdido. Ele, ainda com os braços baixos e um jogo de pernas de um João Bobo. O que restava era tentar de novo: uma esquerda que atingiu algo entre a bochecha e o nariz, seguida de uma rápida e um pouco fraca direita na têmpora.

Minhas mãos doíam dos socos, dos machucados nos dedos, e sua cabeça somente se movimentava a cada golpe, sem reação de dor, cansaço ou desespero. Fico distante como proteção. O perigo ainda estava em seus olhos, fixos nos meus. Eu não podia correr. Já andávamos uns 10 metros. Ele de guarda baixa. Talvez correr fosse a saída. Mas daria as costas. E era enquanto tinha tempo. Correr e procurar o homem sentado na cadeira de encosto. Busco-o com a visão. Nem ele mais, nem a cadeira. Talvez em outro lugar...

De repente, uma forte dor na têmpora esquerda, o meu corpo solto no ar e a inexistência de equilíbrio. Caio inerte no chão, como um saco de farinha, se adaptando ao relevo. Aqueles braços longos...



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