Era como se eu não tivesse acordado, mas a
náusea e a dor de cabeça diziam que sim. Vieram-me as ideias antes das coisas,
e as duas primeiras eram onde eu estaria e como chegara ali. A primeira foi
respondida quando vieram-me as coisas: o gramado que estava deitado, ao lado de
uma avenida sob um viaduto. Reconheci por já tê-la visto de cima, do viaduto. O
gramado, nem sabia da existência, diferente das outras pessoas que se
levantavam de seus aposentos.
Não sabia o que teria mexido comigo, se
algum animal, ou inclusive se tinha sido real mesmo. No entanto, uma primeira
desconfiança percorreu-me ao perceber meus bolsos vazios, sem mesmo minhas
chaves. Teria perdido na bebedeira? Ou talvez nas apostas no bar? Muitas coisas
para responder, mas as memórias eram ineficientes para. Teria eu que percorrer
o mundo perseguindo meu passado.
Antes,
uma olhada em volta.
Percebo, ainda na dificuldade em abrir os
olhos. Num canto, alguns policiais já tentando expulsar os mendigos que, como
eu, dormiam nessa praça-gramado-sejá lá o que for sob o viaduto. Sem pressa,
inquiriam os cidadãos-moradores-nômades-seja lá o que for sobre suas vidas,
suas famílias, seus trabalhos, seus vícios; revistando um por um, bagunçando
suas trouxas-residências-pertences-seja lá o que fosse, depois, passavam ao
próximo...
Sentei-me para olhar ao redor e tentar
reconhecer algo que pudesse fazer, pelo menos enquanto havia tempo sem os
policiais me perceberem e virem encher o saco.
A praça. Larga, embaixo do viaduto, partes
em grama, partes em entulho, comprida, desde a base da subida do viaduto até o
cruzamento desta avenida contígua com outra, maior, onde estavam os agentes da
lei fazendo suas apreensões matinais. Eu, no meio daquilo tudo, vejo uma
espécie de barraco encostado na parede de base do viaduto, com um homem sentado
numa cadeira de encosto, despreocupado com o que havia às suas costas. Penso
que talvez ele soubesse de algo que me ajudasse; ou, pelo menos, se eu chegara
sozinho; ou que horas; ou se estava mesmo acordado.
O levantar-se se torna mais difícil quando
as dores no corpo atacam os enjôos e, repentinamente, seu estômago vem parar na
goela. Curvo-me sobre meu âmago tentando devolver as tripas aos seus lugares.
Nisso, uma tosse antiga, seca, dolorosa, se faz presente; aquela que já tinha
machucado o peito, a garganta e o pulmão, de tão insistente.
Para tentar recobrar a respiração,
sentei-me novamente, talvez um tempo útil para ensaiar a abordagem ao homem
sentado na cadeira de encosto. A essas horas não sabia como conseguira dormir
naquele chão úmido da grama, e frio do vento. Relembrou-me a constante contorção
noturna que o frio provocara; parecia que o vento gelado cortante vinha de cima
e de baixo, sem ter como fugir de quaisquer de suas rajadas.
Ao observar melhor o homem, reparo uma
movimentação conhecida e facilmente decifrável: alguns jovens veem até ele
casualmente e afastam-se, encontrando alguns carros ou pessoas em uma esquina
ou rua próxima, trocando pacotes. Talvez fosse minha resposta. Talvez o elo
para explicar minha estada ali. Mas talvez pudesse explicar minhas dores no
corpo, a tosse, a náusea. Talvez, perigo.
Vejo vários moleques irem e virem com as
encomendas. A ironia: a polícia ainda no começo da praça, no lado oposto,
acordando alguns mendigos desavisados. Fico pensando a situação à qual são
expostos, estes aviõezinhos, perigo de tomar porrada, ficar internado, serem
vitimados em guerra por espaço ou por milícias ou pelos policiais ali ao
lado... Percebo meu engano só depois de ver o homem sentado na cadeira de
encosto levantar o braço direito e olhar - sem movimentar a face ou os olhos –
para os policiais ali do outro lado da praça. Depois de algumas dezenas de
segundos, os olhares se encontram, o braço é abaixado, e então os
representantes da segurança pública afastam-se das moradias, sobem em sua motos
e tomam seu rumo embora. O sistema estava todo completo e não havia
contradição, apenas permissões de ambos os lados. Coexistência. Talvez o melhor
para os dois mundos. O seu sentido só se encontra na existência una do outro,
como a vida, que só ganha sentido quando aponta seu fim, para fazer pensar.
Ainda sentado, acho que chegou a hora de
caçar sentido no meu dia. Um breve papo com o homem sentado na cadeira de
encosto poderia me explicar muita coisa e, outra: o que teria a perder mesmo,
além da vida? A cadeira de encosto está virada em minha direção; não fosse um
moleque na frente conversando com ele, eu conseguiria olhar em seus olhos e
estabelecer aquele contato visual inicial necessário para percebermos um ao
outro. Tento ensaiar duas ou três frases que não sejam muito agressivas nem
muito questionadoras a ponto de eu parecer louco mas o suficiente para eu tirar
minhas dúvidas sendo que não queria acusar ninguém... desisto! O olhar nos
olhos me traria o que dizer, a relação só poderia ser feita assim!
Olho por cima do ombro do moleque, para
tentar olhar o homem sentado na cadeira de encosto logo que o primeiro andasse.
Assim, um olhar fixo e inesperado vindo de mim já me poria numa situação de
segurança, como se eu estivesse premeditando seus movimentos, como se eu
estivesse preparado para qualquer coisa. Coisa mais falsa. Mas este moleque
tinha apenas que andar para eu conseguir contato visual. Mas não andava.
Não imagino o que tanto falavam, mas
podiam dar esta chance a um cara que só tinha os olhos e a esperança como últimas
armas. Se esse moleque andasse, eu teria uma saída, talvez até conseguisse meus
documentos, chaves, carteira, por meio dessa conversa, alguma dica que o homem
sentado na cadeira de encosto me desse; assim não teria que andar 30 km, ou
pedir caronas nos transportes, ou sei lá mais o quê...
O moleque dá alguns passos para trás e
percebo os gestos de fim de conversa. Já é hora de eu me levantar, pois se
olhasse fixamente e andasse em sua direção, estaria mesmo em posição superior.
No que eu vou me levantar, me apoio com o braço direito no chão e percebo
machucados em minha mão, mas não posso me preocupar com isto agora. Ao que
torno minha visão para o homem, vejo somente o garoto me olhando e andando em
minha direção. No momento do contato de nossos olhos, do garoto e meus, uma
falta de ar, seguida de forte tosse e as dores no fim da garganta, que me
impedem de levantar, e caio sentado de lado, novamente.
Daqueles 100 metros que nos afastavam,
quase metade já corria às suas costas. Somente agora percebia o garoto como
algo real: quase 1,70 de altura, um jeito atarracado, mas largo, de traços
negros e cor parda escura. Mas o que facilmente se notavam eram os braços,
longos, tão, que pareciam chegar aos joelhos, se soltos. Uma mão no bolso e
outra com uma sacola fechada. Chinelos de dedo com as solas quase em fatia.
Bermuda marrom rasgada, provavelmente o que sobrara das calças, e uma camiseta
amarela. Mastigava algo com o olhar fixo em mim, andando devagar, por vezes
tropeçando em sua própria lentidão. Eu, assustado, em posição de vítima de
espancamento, tossia. E tossia. E de novo. Olhei a roupa: pingos de sangue. O
susto daquele garoto em minha direção e o susto do sangue somavam-se em minha
tosse. O que ele podia querer? Já chegando aos 20 ou 15 metros de mim ele parou.
Ainda olhando fixo, escolheu um raio em
minha volta e começou a andar. Cuspiu aquilo que mastigava, que notei ser uma
tampa de bic. Naquele momento não sabia ao certo o que fazer, mas sabia da
impossibilidade física de correr, somado ao orgulho moral da covardia sem nem
saber o motivo. Restava-me apenas encarar, talvez não ele, mas o destino.
O garoto antes de completar um quarto de
volta de mim, começou a se aproximar, como se eu tivesse gravidade própria, mas
sem sair de seu raio elíptico. Finquei os pés no chão e olhei o horizonte,
agora de pé. A adrenalina curou a tosse, mas a falta de equilíbrio vinha
testemunhar minha fraqueza e cansaço.
A coisa mais racional que pensei na hora
era tentar derrubar o garoto e correr para falar com o homem sentado na cadeira
de encosto, antes que o garoto chegasse a mim. Ele se aproximava, com os olhos
em chamas, até que a dois passos de mim, ele me olhando com o queixo alto,
assumo meus braços em posição de luta e também tento rodeá-lo. Os soluços de tosse
vinham, mas o nervosismo não me deixava notar. Eu, de cima da calçada e ele na
rua, de braços baixos, acerto uma direita muito em cheia em sua bochecha.
Pensei em correr, mas não podia dar-lhe as costas facilmente; se ele caísse,
correria. O corpo foi para trás, bambeou desequilibrado. Cairia, não fosse a
perna esquerda de apoio que não deixou o corpo esfacelar-se.
A face nada refletia o golpe e seus passos
à frente me faziam crer que eu estava perdido. Ele, ainda com os braços baixos
e um jogo de pernas de um João Bobo. O que restava era tentar de novo: uma
esquerda que atingiu algo entre a bochecha e o nariz, seguida de uma rápida e
um pouco fraca direita na têmpora.
Minhas mãos doíam dos socos, dos
machucados nos dedos, e sua cabeça somente se movimentava a cada golpe, sem
reação de dor, cansaço ou desespero. Fico distante como proteção. O perigo
ainda estava em seus olhos, fixos nos meus. Eu não podia correr. Já andávamos
uns 10 metros. Ele de guarda baixa. Talvez correr fosse a saída. Mas daria as
costas. E era enquanto tinha tempo. Correr e procurar o homem sentado na
cadeira de encosto. Busco-o com a visão. Nem ele mais, nem a cadeira. Talvez em
outro lugar...
De repente, uma forte dor na têmpora
esquerda, o meu corpo solto no ar e a inexistência de equilíbrio. Caio inerte
no chão, como um saco de farinha, se adaptando ao relevo. Aqueles braços
longos...
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