20180621

Crítica de filme ou sobre um Junho

("Zollamtssteg Bridge". Vienna)



Antes de amanhecer, dia desses, me peguei pensando numa lista de filme:


  • O filme não é sobre um romance. É sobre a complexidade da introspecção humana em relação com outras pessoas, diversos lugares e uma infinidade de memórias e esperanças. Mas tudo isso abarca um romance.
  • Num primeiro momento, o modo como as personagens se conheceram parece trivial, randômico como um algoritmo travado, como um encontro fortuito num trem em que ninguém esperava definir seu dia, ou seu mês, ou talvez algo além disso. Entretanto, aquele momento - até blasé - foi se ressignificando com o passar da noite, das semanas. Isto demonstra o modo como um momento não é nada em si mesmo, mas se torna algo simbólico com o peso que vai ganhando com uma pilha de outros momentos sobre ele;
  • as pessoas costumam conversar com objetivos muito delimitados ou muito interessados, com dificuldade de ouvir. Mas os dois ligam e se interessam naquilo que o outro fala; ligam tanto que enquanto um fica 15 minutos num quase monólogo perdendo linhas de pensamento e retomando, o outro parece estar se alimentando daquelas palavras e daqueles olhos excitados. Ao mesmo tempo em que se ouve racionalmente, se emociona visualmente;
  • as conversas são sobre o tudo e sobre o nada e é por isso que ficam confortáveis em conversar. O respeito e curiosidade por uma conversa aberta, sincera, sem travas nem julgamentos também é símbolo de conforto e os aproxima mais e mais. Proximidade e conforto que os faz se sentir em casa em qualquer lugar da cidade, andando perdidos sem rumo, do restaurante para o café e de lá para o bar, falando de filosofia linguística alemã ou mesmo sobre o mais correto modo de ensacar leguminosas;
  • o Linklater é um cara genial - lembra Manoel Oliveira -. que uniu os personagens por motivos distintos: enquanto um tem preferência por um mundo monocromático, cético, desmitificado; o outro olha o mundo através de olhos loucos de uma paleta arco-íris espalhadas por todas as peles. Ainda que o diretor se empenhe a todo momento em deixar ambos fora do corte com movimentos horizontais de fuga de câmera em restos de cenas para lhes retirar o protagonismo do filme, são somente os dois que fazem tudo o que importa ali e não há catástrofe que diminua a atenção que lhes deva ser ofertada;
  • tal centralidade na trama é tanta que nenhum dos protagonistas se lembram de se alimentar momento algum, parecem querer apenas gastar toda sua energia um com outro, conhecendo a conversa do outro, como se o Tempo fosse acabar e a única salvação fosse aprender totalmente o outro;
  • E durante todo o tempo há uma questão inerte sobre o respeito e o desrespeito ao tempo; tanto em relação àquele tempo que estão imersos numa não-espera apreensiva e constante da chegada do limite - seja ele o trem, o aeroporto, o carro estacionado, o trabalho ou a família -; mas também em relação àquele momento de despedida na estação em que o querer estar grudado e o racionalizar as vontades entram em choque num sem-tempo de ação, na qual a inação relega ao futuro alguma decisão.

20180607

Sobre o mito do vazio


O vazio pode ser a ausência que marca a presença.
Como as marcas no corpo que gritam o vazio. A sombra que existe na incidência da luz, incide na escuridão.

A casa cheia de vestígios de 4 dias e 4 noites de viagem. Viajando em alto-mar, navegando ao léu, mas não perdidos. Só pode estar perdido quem tem porto que o espera. Não era o caso. Não havia destino. Era acaso. Era o caso da coincidência do encaixe encapotado em cobertas e encantado em conversas. Riso solto, suor na pele, dentes na carne. Óculos nos olhos, palavras na boca, navegava em suas águas. Palavras de outros momentos, enquanto títeres amarrados, tal qual queria amarrá-la. Tal qual queria ser corda para. E, como corda, suspendê-la. E suspensa mantê-la.

E seria o mundo, talvez, todos os vazios que deixamos por preencher enquanto nos ocupamos com a produção da rotina. O vazio entre os pés e o chão. O vazio entre a comédia e a gargalhada alta. Os vazios que sobram, impossíveis de preencher, entre os corpos colados; ou mesmo os vazios do corpo que buscamos preencher até aquele momento do pequeno vazio da vida. Mas também seria o mundo o vazio na cama, no quarto, na casa, no cão, na carne. O vazio de águas cortadas por navios viajando. Mas navios que navegam calmamente, sem rumo nem pressa, feito continentes em sua longa história de movimentação. Como se o tempo não fosse acabar. Como se o domingo não fosse chegar.